(U)Ma Temática Elementar José Carlos Santos

Clube de Matemática da SPM

 




A Matemática elementar tem muito que se lhe diga. Embora nos seja familiar, é sempre possível encará-la de um ponto de vista novo ou inesperado.   

José Carlos Santos - Departamento de Matemática da FCUP

          


Artigo de fevereiro de 2013

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Título: Notação posicional

O título da crónica deste mês poderá não soar a nada a muitos leitores. Mas mesmo aqueles que nunca ouviram falar em «notação posicional» já a têm vindo a usar desde crianças, embora sem o saberem. Considere-se, por exemplo, o número 2523. Neste número, o algarismo 2 surge por duas vezes, mas com dois significados diferentes: o 2 da direita representa a quantidade 20, enquanto que o da esquerda representa a quantidade 2000. Ou seja o valor do símbolo «2» depende da sua posição dentro do número onde ele surge.

Como acontece frequentemente com a matemática mais elementar, esta observação parece tão simples que talvez seja difícil perceber qual é o interesse que tem. O seu interesse provém de permitir que se possam exprimir todos os números naturais que surgem na vida corrente usando sequências curtas de somente dez símbolos (os dez algarismos). E os «dez» da frase anterior só surgem aí por exprimirmos os números na base 10; se usássemos a base 2 (tal como os computadores), dois símbolos seriam suficientes.

A numeração romana, por exemplo, não usa uma notação posicional. Em I, em XI, em IX ou em LIX, o I representa sempre a quantidade 1, embora a maneira como o I está colocado relativamente às outras letras tenha importância (XI significa 11, enquanto que IX significa 9). É um facto que a posição do símbolo I tem importância (se estiver à direita do X, é para somar; se estiver à esquerda é para subtrair), mas tem sempre o mesmo significado: 1.

Usualmente, a maneira usualmente empregue no Ocidente (e, de facto, na maior parte do mundo) para representar números designa-se por «numeração árabe», mas esta designação deve-se somente ao facto de ter chegado à Europa através dos Árabes. De facto, a chamada «numeração árabe» é de origem indiana, estando já completamente desenvolvida no início do século IX, quando foram escritos os textos mais antigos que se conhecem do mundo árabe a explicar o seu uso: Sobre o cálculo com números hindus, do matemático persa Al-Khwarizmi (de cujo nome vem a palavra «algarismo») e Sobre o uso dos números indianos, do filósofo árabe Al-Kindi.

A introdução da numeração árabe (e, em particular, da notação posicional) na Europa foi um processo lento, que levou séculos. O primeiro texto da Europa cristã onde surge aquele sistema de numeração é o Codex Vigilanus, uma compilação de textos feita por três monges do mosteiro de San Martín de Albelda no ano 976. Já antes disso outro monge, Gerbert d'Aurillac, tinha aprendido a numeração árabe em abadias de Catalunha. Viria mais tarde a escrever um texto sobre este tópico, De multiplicatione et divisione, que veio a ter impacto devido ao facto de Gerbert ter sido eleito papa no ano 999, tendo exercido esse cargo até à sua morte, em 1003, sob o nome Silvestre II. Acontece que Silvestre II, para além de ter sido papa, foi possivelmente o maior cientista europeu do seu tempo. Foi ele quem reintroduziu o ábaco na Europa (onde não era usado desde o tempo do Império Romano), bem como a esfera armilar (que está presente na bandeira portuguesa).

A reintrodução do ábaco na Europa espalhou-se rapidamente, mas o mesmo não aconteceu com a numeração árabe. Durante séculos, os ábacos eram empregues na Europa para fazer cálculos e os resultados eram representados em numeração romana. O livro que, mais do que qualquer outro, levou os europeus a adoptarem a numeração árabe foi o Liber abaci, escrito em 1202 por Leonardo de Pisa, mais conhecido por Fibonacci. O título do livro significa «O livro dos cálculos» mas, ironicamente, por vezes é mal traduzido por «O livro do ábaco», quando o livro pretendia explicar como efectuar cálculos sem se ter de recorrer a um ábaco! O confronto entre os abacistas (adeptos do ábaco) e os algoristas (adeptos da numeração árabe) durou séculos e a supremacia destes últimos só foi alcançada no século XVI.

 

Publicado/editado: 21/02/2013