Intervalos por Fernando Pestana da Costa

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião março de 2015



 


No ano em que a SPM faz 75 anos, este será um espaço onde a matemática vai ser o tema central todos os dias "uns" de cada mês. Intervalos será o título desta rubrica...            

   

Fernando Pestana da Costa -  Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática             



Intervalos por Fernando Pestana da Costa - Dia 1

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião março de 2015

 

Clube de Matemática SPM

Facebook Clube SPM 

                                

Título:    
Recomendação sobre recomendação



O mais fascinante livro de História e de Filosofia das Ciências que eu alguma vez li foi o clássico de Thomas Kuhn “Structure of Scientific Revolutions” (The University of Chicago Press, 1970). Lembro-me bem do deslumbramento que tive ao lê-lo pela primeira vez, há já quase um quarto de século (o tempo passa!…) e de ter finalmente compreendido a (parafraseando Eugene Wigner) desrazoável eficiência das Ciências Exatas pós revolução científica: a existência de paradigmas aceites pela comunidade científica, unificando práticas, estabelecendo metodologias, procedimentos e linguagens, delimitando a classe de problemas legítimos, no fundo enquadrando a comunidade e a sua atividade. 

Uma indicação de que a visão kuhniana da Ciência é, muito provavelmente, uma descrição mais apropriada à natureza e prática da Ciência do que outras descrições filosóficas mais a-históricas, parece-me ser a grande diferença que se verifica habitualmente na estrutura de textos científicos de Ciências Exatas (Matemática, Física, Astronomia, Química,…) e de Ciências Sociais. 

Uma das características comuns a teses de doutoramento de diversas Ciências Sociais (Sociologia, Ciência Política, Ciências da Educação, etc.) e de Humanidades, e que está completamente ausente nas teses das Ciências Exatas, é a existência de um por vezes muito extenso capítulo dedicado aos enquadramentos e pressupostos teóricos e metodológicos do trabalho: ou seja, há a necessidade de definir claramente as balizas paradigmáticas do estudo, facto que, creio, reflete a ausência de um paradigma universalmente aceite na sub-comunidade científica em causa. 

Este tipo de requisito é, normalmente, desnecessário em textos de Matemática, de Física, ou de Química. Não deixa de ser interessante constatar que o caso da Economia é, neste aspeto, muito curioso: a sua aspiração a ser tratada como uma Ciência Exata reflete-se não apenas no aparato matemático usado, por vezes altamente sofisticado, mas também, frequentemente, na estrutura dos textos. Que a identificação de muitos dos pressupostos, tipicamente invisíveis, utilizados nos estudos académicos de Economia é crucial para o entendimento do carácter ideológico de muitas afirmações e conclusões aparentemente apenas técnicas e factuais, foi magistralmente descrito no estimulante livro “The Assumptions Economists Make” de Jonathan Schlefer (Harvard University Press, 2012), cuja leitura foi-me mais clarificadora sobre a natureza das atuais dificuldades económicas do que os comentários que tenho lido e ouvido sobre a maldade da dívida pública e o desregramento dos governos do Sul. Mas adiante…

Infelizmente, em textos de Ciências Sociais com características menos académicas, esta indicação dos pressupostos subjacentes está frequentemente ausente e as afirmações são feitas sem explicitação clara das hipóteses metodológicas e ideológicas utilizadas. Tal é expectável em textos jornalísticos, pela própria natureza dos mesmos, mas não deixa de ser um fator originador de ruído e, até, de desinformação, que muitas vezes se discuta nos jornais temas complexos com certa leviandade, focando-se mais no “sound bite” do que numa análise séria dos documentos. Isto ocorreu muito recentemente a propósito da Recomendação do Conselho Nacional de Educação sobre “Retenção Escolar nos Ensino Básico e Secundário”. 

Não é aqui o local para fazer uma análise detalhada dessa Recomendação, a qual contém um conjunto de constatações e de recomendações que dificilmente poderão ser contestadas por alguém de boa-fé: a necessidade de intervenção precoce, da conceção de programas intensivos e exigentes de apoio às dificuldades, do envolvimento e corresponsabilização parental, de se evitar o risco da problemática ser analisada numa perspectiva de contenção de custos, etc.. Mas, a par destas, surgem opiniões acerca da retenção que são, de facto, afirmações non sequitur com as primeiras e que partem de pressupostos cuja assunção não é explicada, ou que é apenas parcialmente explícita: a suposta “excessiva cultura da ‘nota’ ”, a “contaminação” da avaliação interna pela externa, a necessidade de reavaliação da adequação das provas do final do 1º e 2º ciclos do Ensino Básico aos objetivos da aprendizagem, os supostos problemas de equidade e igualdade de oportunidades que a retenção comporta, a revisão do modelo de acesso ao ensino superior, etc. 

Recomendaria, portanto, que se lesse a Recomendação com o cuidado devido a um texto quase-académico de Ciências Sociais, não deixando de se ler o muito extenso Relatório Técnico anexo (89 páginas), onde é explicitado parte do enquadramento paradigmático. Tal cuidado permitirá extrair do documento as recomendações consensuais e úteis e identificará aquelas cuja relação com a temática em causa é, na melhor das hipóteses, ténue.

Publicado/editado: 01/03/2015