Heitor Lourenço (Ator) - Entrevistado clube spm de novembro de 2015

Clube Matemática da SPM - Clube Entrevista

A entrevista ao ator Heitor Lourenço da série portuguesa "Bem-Vindos a Beirais" foi realizada ao vivo na 2ª edição da Feira da Matemática no Museu da História Natural e da Ciência em Lisboa. No auditório Manuel Valadares, o divertido ator deu uma entrevista espetacular ao clube de matemática da spm, atividade inserida no programa deste evento. Uma entrevista que durou mais de uma hora, onde foram falados temas como a infância, a escola, a tropa, o trabalho, algumas viagens, a Carlota e o Jonas, a série Bem-Vindo a Beirais e, claro a matemática. Aliás, perante uma plateia repleta de matemáticos, o conhecido ator colocou um problema matemático do outro mundo. Vamos ver as soluções desta entrevista.

Heitor Lourenço, ator, apresentador de televisão, escritor, 48 anos de idade, é um caso notável da representação em Portugal. Simpático, divertido, afável e muito profissional. Vamos ver que também é um excelente conversador... 

Heitor, Bem-Vindo à Matemática...
Obrigado.

A tua infância daria que tipo de série: morangos com açucar, o bando dos quatro, inspector max...?
Gostava muito da série os pequenos vagabundos, tinha uma música que ainda hoje me lembro. As aventuras que se passavam nessa série eram reproduzidas por mim e pelos meus amigos na zona onde morávamos, em pleno pinhal, que ficavam por trás das nossas casas. Infezlimente, hoje já não existem. 

Com 10 anos, o que decorastes e não mais esqueceste da tua escola?
Sinceramente, lembro-me essencialmente dos espaços e não daquilo que aprendi. Há dias fiz uma reportagem para a SIC, onde voltei a esses lugares da escola primária. Tenho a certeza que aquilo que sou hoje se devem a alguns desses momentos. Brincava muito nos recreios, onde o espaço 1999 era outra série que previligiávamos. A minha escola primária realizava muitas peças e, lembro-me do exato momento em que percebi e pensei “é isto que eu quero fazer para o resto da minha vida”.

Alguma vez disseste “Bem-Vindo à... Matemática”? Que tipo de ator eras na sala de aula de matemática?
A matemática é o calcanhar de Aquiles de muitos alunos em Portugal. Eu tive de perder esse bicho de sete cabeças porque fui obrigado a ser um excelente aluno a matemática. A minha mãe foi professora de fisico-quimica, logo obrigou-me a ter a matemática muito presente. Os testes que fazia à disciplina eram quase todos acima dos 80 por cento. 

Mas chegaste a gostar de matemática ou foi mesmo por obrigação?
Gostava da matemática quando a percebia. Só uns anos mais tarde, é que me apercebi para que serve, por iniciativa própria. Quis recordar matemática, e aí sim percebi melhor a matemática. A matemática está em todo o lado, está presente em tudo o que fazemos na nossa vida. O que falta aos alunos é perceber para que serve a matemática e que está presente em tudo. Li um artigo fantástico que as grandes construções da humanidade se podem traduzir em equações matemáticas, nas catedrais, nos seus recantos, até na música. Está tudo muito ligado. É uma pena que na vida escolar, não se tenha essa dimensão. Eu pelo menos não a tive. Damos por nós a estudar os conteúdos matemáticos, sem percebermos que estão ligados à nossa vida.

Iniciaste a representação muito novo. Até na tropa usaste os teus dotes de ator para convencer o pelotão por algo que não existia...
O Carlos não disse no início desta entrevista, mas nós conhecemo-nos porque andamos juntos na tropa. Foram momentos difíceis mas com alguns episódios engraçados. Um dos graduados era terrível. Era mau. Bom, nessa altura eu já era ator. Para equilibrar as coisas, entre os que mandavam e nós, os recrutas, eu tentava fazer algumas maldades. Um dia disse que ia levar uma cadela para a formatura. Estão a ver com aquela rigidez toda. Imaginei uma cadela cocker spaniel chamada Carlota. Na tropa era tudo muito rígido, estávamos todos fardados, em plena formatura e eu dizia: quieta, Carlota! Montes e montes de tempo. No fim, o graduado veio ter comigo e perguntou: trouxe um cão para a parada? Não havia cão nenhum. Consegui convencê-lo...

Caricatura de Gonçalo Gouveia do Livro de Curso "Soldados Cadetes" de 1994 na Escola Prática de Cavalaria em Santarém

Mas não havia cão nenhum?
Claro que não, eu imaginei a Carlota. Eu fingia que falava com ela. A seguir, fiz outra. Tudo o que se fazia na tropa era de uma formalidade horrível. Nós recrutas queríamos ir comer, estávamos sempre cheios de fome ou queríamos descansar, tínhamos de reunir e pedir licença... Para receber uma carta, tínhamos todos que ir para a formatura, ordem unida para receber isto e aquilo. Para receber a carta tinha-se de dar dois passos para a frente, virar à direita, ir em frente, meu comandante dá licença e mais não sei o quê. Era horrível. Houve um dia que os mais graduados tinham um jantar de gala, então decidi fazer algo para perturbar esse jantar. Mandei uma carta para cada um de nós. Eles queriam sair, ir ao tal jantar e ficaram duas horas a chamar-nos um a um. Um deles (tenente) dizia: eu hei-de descobrir quem foi o espertinho que fez isto. Eu nunca contei que tinha sido eu o autor daquela peripécia.

Existe uma personagem real na tua vida chamada Jonas...
Sim, esse existe. É meu cão. É um buldog. Eu gosto muito de animais.

Em 2007 inicíaste-te também como escritor com a obra dedicada ao público infantil "Histórias da Dona Esperança" da Plátano Editora e “O triângulo das Portas”. Cá está a matemática. Como foi?
A minha editora pediu-me para escrever um livro para jovens dos 10 aos 12 anos. Inspirei-me nos meus dois sobrinhos, que brincavam no pinhal, atrás da casa dos meus pais, no bocadinho que ainda existe. Um dia fui com eles. Eles tinham uma brincadeira em curso, uma pequena aventura inventada por eles, fiquei fascinado ao ver aquilo. O imaginário deles, passava muito pelo Harry Potter ou pela Disney. Naquele local, havia um sítio que era a casa de um, a casa de outro e uma terceira porta. Pensei... isto dava uma história fantástica. E, se eu transformasse isto em livro? Como éramos três, acabei por dar-lhe o título do “triângulo das portas”. A palavra trIângulo deriva de sermos três personagens e não por ser um termo matemático.

Em Maio de 2013, chega o fenómeno “Bem-Vindo a Beirais”. O sucesso desta série deve-se...
Sobretudo à simplicidade. Fomos contratados, numa fase em que eu estava a fazer a peça teatral "Guru". Lembro-me de ter horários muito apertados. Inicialmente, estavam definidos pela produção realizar apenas 80 episódios, em 3 meses. Uma loucura. Fiz muita força para conciliar horários porque apetecia-me muito fazer a série. Estreámos no dia 13 de maio. O público começou a gostar muito. Depois foram mais 20, 80, 100. Ficamos 2 anos e meio a gravar, sempre com muito sucesso. Ainda hoje, estou a recuperar deste trabalho cansativo mas fantástico. Nós gravávamos 12 horas por dia. O sucesso deve-se à simplicidade da série, uma equipa que não estava à espera de nada, que se dava muito bem e, queria muito trabalhar. 

O lugar geométrico “Beirais” é o quê?
Estás a puxar para a matemática. Parece sempre maior do que aquilo que é. Quando uma pessoa vai lá, vê 3 paredes e um espaço enorme. Depois, cada ator tinha o seu espaço. O meu e do Miguel era muito pequeno.

Fazes dupla na série com o Miguel Dias. Juntos funcionam tão bem. Porquê?
Nunca tínhamos trabalhado juntos exceto numa produção da Teresa Guilherme Produções. Não era uma pessoa que eu me desse por aí além. Quando me apresentaram a personagem, percebi que só iria funcionar se nos dessemos bem. Houve um respeito tão grande de parte a parte pelo trabalho de cada um, que houve uma altura que os personagens não existiam individualmente mas sim em equipa. Eu ouvia-o atentamente, e ele a mim. Curiosamente, a curto prazo, iremos provavelmente ter outro projeto juntos fora do Beirais. 

Em julho deste ano apanhaste um susto. O que se passou em Paris? Foi caso para dizer “Tirem-me deste filme!”
Vinha para Portugal, entrei no avião normalmente. Peguei no meu ipad e comecei a ler, como sempre o faço. Recordo-me perfeitamente, que lia um livro sobre técnicas do ator, de um autor que gosto muito e um texto sobre budismo, que estava em b-link, com caracteres tibetanos com tradução em português. Houve um senhor ao meu lado que achou que eu estava a ler o Corão e que tinha dito em voz alta bomba, explosão e morte. Fez queixa e eu fui detido supostamente por ser terrorista no aeroporto de Paris. O avião foi completamente evacuado. Na fase de interrogatório, até o meu lugar no avião foi questionado. De facto, o meu lugar não era aquele que estava sentado. Uma senhora tinha me pedido para trocar para ficar junto à sua família. Quando a policia começou a investigar, verificaram que não era o meu nome. Foi uma sucessão de coincidências anormais. 

O homem que fez essa queixa era português...
Era português. No final de tudo, quis conhecê-lo e conversar com ele. Ele só me disse: porque é que não ouvi a minha mãe, que disse que você era um ator conhecido em Portugal? 

Porque achas que aquele homem viu em ti um potencial terrorista?
A nossa mente pode fabricar aquilo que nós quisermos. A nossa mente pode transformar uma formiga num dinossauro. Uma coisa que não era nada, este senhor fabricou um momento insólito. O nosso mundo está complicado, principlamente quando viajámos. Temos de arranjar maneiras para viver melhor. Existe uma história tibetana que eu gosto muito, que diz o seguinte: como o chão que pisamos nos incomoda quando andamos descalços, e é difícil revestirmos o mundo inteiro a couro para não nos sentirmos desconfortáveis, então, o melhor foi colocarmos esse couro nos pés de cada um de nós, resolvendo, assim, o problema. Esse é o nosso desafio todos os dias. Eu sou otimista, acho que o mundo vai melhorar, mas não é para já. Uma vez na vida, consegui lidar muito bem com uma situação muito difícil e complexa. Tenho esperança que em próximas ações similares, eu possa lidar da mesma maneira.

Estás de parabéns pela forma como reagiste a este problema num momento posterior...

Quando nos picam, nós reagimos de uma forma natural à picada. Eu não reagi à picada neste problema, eu arranjei a sola para os meus pés. Ainda há dias passei por outra experiência no Aeroporto de Amesterdão, em que os passageiros tinham que por passar por um mecanismo, tipo uma redoma, entramos para lá, tipo rx. Transparente, não ficamos fechados, é do género de uma máquina de ressonância magnética. O mecanismo anda à nossa volta e faz um barulho, tipo vrvrvrvrvrrvrvr... depois saímos.                            

Da esquerda para a direita: Anabela Teixeira (Associação Ludus - Organizadora da Feira da Matemática); Carlos Marinho (Clube SPM); Heitor Lourenço (Ator Entrevistado) e Afonso Marinho.

Últimas questões da entrevista...
Já estamos a chegar àquela parte “o que dizem os teus olhos”...

Quase, mas prometo que não te faço chorar. O matemático Aristóteles disse que “somos aquilo que fazemos repetidamente”. Ser ator enquadra-se nesta frase?
Sim. Gostava que isso fosse verdade. Repetir sempre numa perspectiva de descobrir maneiras de representar melhor. Na série Beirais pediam-me para reproduzir os textos ipsis verbis tal como foram escritos. E, eu fazia isso. De uma forma geral, digo os textos como foram escritos, palavra a palavra, respeitando quem os escreveu. Acho que a série Beirais me deu muito essa disciplina.

O matemático húngaro Alfred Rényi disse que "quando estou infeliz trabalho matemática para ficar feliz. Quando estou feliz, trabalho matemática para me manter feliz". O que te faz feliz?
Gosto muito de ser ator, porque estou a fazer uma coisa que escolhi. Não sei muito bem o que é a felicidade... sei que ela existe... ainda ando à procura. O que me faz mesmo feliz é quando tenho a possibilidade de viver e ter tempo para estar a observar-me, tentar perceber aquilo que faço. Este incidente em Paris, foi muito chato, mas se me perguntares se o pudesse apagar da minha vida se o fazia, provavelmente, diria que não. 

Ficaste mais forte…
Foi um processo de vida, que me deu outro significado. Carlos, quantas pessoas exsitem no mundo? 

Umas 7 mil milhões…
Em 7 mil milhões de pessoas que existem no mundo, faço parte de uma minoria muito pequena, que lhe aconteceu algo inusitado. Quantas pessoas podem dizer que foram acusadas em pleno século XXI, na europa, de terrorismo?                                    

Heitor, muito obrigado por estares aqui no Museu…
Agora sou eu que tenho uma pergunta para ti e para as pessoas que estão aqui que gostam de matemática. Chego à conclusão que me acontecem coisas pouco normais. É uma equação complicada. Há uns anos fui à Tailândia. Fui ao triângulo dourado, fazer um safari a uma reserva de elefantes. Como estava sozinho, tive de fazer par, com um japonês, enquanto a mãe e a mulher ficaram juntas. Ficámos amigos. Mais tarde, recebi um telefonema dele dizendo-me que estava hospedado num hotel em Lisboa. Aqui começa o problema matemático. Encontrámo-nos e trocámos contactos. Mas nunca mais nos falámos. Cinco anos depois, fiz uma viagem ao Perú, a Machu Picchu, um sítio extraordinário, porque é um local lindo. Ainda, não refeito desta emoção, olhei para o lado e quem é que estava: os meus amigos japoneses. Agora, senhores matemáticos, qual é a probabilidade de isto acontecer? Duas pessoas que nunca se viram na vida, uma mora em Portugal outra no Japão, se encontrarem duas vezes na vida, sem combinarem, num mundo de 7 mil  milhões. Existe solução matemática para este problema? 

Por Carlos Marinho

Publicado/editado: 01/11/2015