(U)Ma Temática Elementar por José C. Santos

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião maio de 2016

 


A Matemática elementar tem muito que se lhe diga. Embora nos seja familiar, é sempre possível encará-la de um ponto de vista novo ou inesperado.                                       

José Carlos Santos - Departamento de Matemática da FCUP                              


Dia 21 de cada mês

                 


 

(U)Ma Temática Elementar por José Carlos Santos - Partir polígonos aos bocados

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Título: Partir polígonos aos bocados


Comecemos por uma diversão: pegamos numa folha de papel, cortámo-la em vários bocados com uma tesoura (com cortes rectilíneos) e reagrupamos os pedaços para obter uma figura. Imensas formas diferentes podem ser obtidas por este processo.


Isto pode ser facilmente convertido num desafio. E se quisermos obter uma determinada figura fixada à partida? Será sempre possível fazê-lo? É claro que há duas condições mínimas que essa figura tem que reunir: tem que ter a mesma área que a folha de papel de que se partiu e tem que ser um polígono.


A título de exemplo de um problema desafiador dentro deste género, consideremos um problema proposto por Henry Dudeney no início do século XX: cortar um quadrado com apenas três cortes e reagrupar os pedaços de modo a obter um triângulo equilátero. É um problema que está longe de ser trivial. Uma solução pode ser vista na figura abaixo.
 



Não se deve pensar que estes desafios são somente passatempos para pessoas com muito tempo para gastar. Este tipo de problemas já era estudado na antiga Grécia e Arquimedes escreveu um texto (o Stomachion) sobre este tópico.


Isto leva a uma pergunta natural: será que um problema deste tipo tem sempre solução? Mais precisamente: dados dois polígonos com a mesma área, será sempre possível decompor um deles em vários polígonos, reagrupar esses polígonos e obter o outro? A resposta a esta pergunta foi dada na primeira metade do século XIX por três matemáticos: William Wallace, Farkas Bolyai e Paul Gerwien. E os três provaram (independentemente uns dos outros) que sim, o problema tem sempre solução.


E em dimensão três? Será que se passarmos de polígonos para poliedros o problema análogo também tem sempre solução? O caminho para chegar à resposta a esta pergunta é tortuoso. Ainda na primeira metade do século XIX, Gauss (que fora colega de curso de Farkas Bolyai) observou, na sua correspondência, que a demonstração da fórmula do volume da pirâmide (um terço do produto da área da base pela altura) é bastante mais difícil de obter do que a fórmula da área do triângulo. De facto, as demonstrações então conhecidas envolvem sempre algum processo de passagem ao limite (Cálculo Infinitesimal ou o Princípio de Cavalieri). Não seria possível obter a fórmula por algum processo mais elementar que envolvesse somente decomposição em poliedros e colagem? É o que acontece com os triângulos. Esta dúvida levou David Hilbert a propor o seguinte problema em 1900: será que, dados dois tetraedros com a mesma base e com a mesma altura, é sempre possível decompor um deles em poliedros, combiná-los e obter o outro tetraedro? A resposta é negativa e foi obtida nesse mesmo ano por um aluno de Hilbert, Max Dehn.


Por isso, da próxima vez que o leitor quiser saber porque é que a fórmula para o volume da pirâmide é tão mais difícil de justificar que as fórmulas para as áreas dos polígonos, já sabe o motivo.


Publicado/editado: 21/05/2016