Linhas e Pontos com Carlos Marinho




 

Este espaço vai ser dedicado a aspectos simples da vida em contexto real, em que a matemática pode entrar como elemento surpresa. Em síntese, estas "linhas" terão como base "pontos" comuns da nossa vida, em que a objectividade da Matemática pode fazer compreender alguns "problemas" que vão surgindo em contexto real. Como afirmou Pitágoras, "Todas as coisas são números". Nesta rubrica tudo cabe... até a matemática. 

   

Carlos Marinho -  Coordenador do Clube da Matemática da Sociedade Portuguesa de Matemática




Artigo de Janeiro


Título: Aula de matemática 100 abrigo


No dia 19 de Dezembro do mês passado dei uma aula de matemática diferente. Um conjunto de pessoas denominadas de 100 abrigo assistiu e participou num momento diferente. A pergunta que faço é a seguinte: quem se divertiu mais, os alunos ou o professor? Tentarei dar respostas mais adiante.

Outras questões que se podem fazer num momento destes são: 1) Uma aula para 100 abrigo como se prepara? 2) Que conteúdos se focam? 3) Como se motivam estes alunos? 4) Que objectivos a atingir? 5) Que avaliação se pode fazer depois desta aula?


Quando  assumi o desafio do Dr. Victor Santos director do Terciário Porto – IEFP em dar uma aula de matemática para 100 abrigo, a minha primeira preocupação foi definir que conteúdos dar e, como o fazer. O problema ficou resolvido quando pensei em levar literalmente para esta improvisada sala de aula um saco preto de lixo…cheio de lixo. Reuni todo o tipo de material, lixo normal que qualquer família produz diariamente, a saber, pacote de leite (paralelepípedo), garrafa de água (cilindro), papel higiénico (cilindro) entre ouros objectos do dia-a-dia, um dado (cubo) entre outros afins. Uma parte da aula estava definida, rever um domínio fundamental da matemática que é a geometria, em particular os sólidos geométricos. Todos os dias milhares de 100 abrigo mexem em objectos no lixo que para os matemáticos não passam de sólidos geométricos. Deixo aqui apenas um momento que considerei interessante uma vez que estamos habituados que os alunos nas escolas façam o mesmo tipo de confusão. Quando peguei no pacote de leite e perguntei que sólido geométrico era aquele, a resposta não se fez esperar. A resposta de um 100 abrigo foi “é um rectângulo”.


A aula teve também uma parte onde num processo interactivo trabalhamos o cálculo mental. De uma forma muito simples consegui perceber naquele momento que algumas daquelas pessoas apesar de desprovidas de bens essenciais, tinham um bom raciocínio e um cálculo mental correcto que num espaço de aprendizagem estes alunos poderiam aprender a mesma matemática que se ensina nas escolas do país.


Eu diverti-me muito. Penso que os 100 abrigo também. Pelo menos se um dia destes alguém lhes perguntar algo sobre matemática, a resposta será certamente: “nós tivemos uma pequena aula antes do dia de natal”. Penso que os objectivos foram atingidos. Houve inclusive tempo para um dos 100 abrigo rectificar o professor quando tentou avançar depressa demais num dos itens que estavam escritos no power-point apresentado.


Para finalizar fiz a seguinte brincadeira. Os matemáticos referem muitas vezes que vêm as coisas doutra maneira. Tirei do saco do lixo uma bola. Uma bola de futebol. Coloquei-a debaixo do braço e perguntei de imediato: “Que sólido é este?” Se mais depressa fiz a pergunta mais depressa tive a resposta. Uma bola. Uma bola de futebol. Perguntei então que sólido era aquele. Um dos presentes respondeu: uma esfera. Perguntei de novo: “Têm a certeza?” Todos por unanimidade confirmaram a resposta. Questionei então: “Sabem qual é diferença entre um matemático e outra pessoa qualquer na análise a este objecto?” Ficaram muito surpreendidos com aquela pergunta. Afinal aquela era uma bola de futebol normalíssima.


A minha resposta espantou a plateia. Em seguida expliquei. Para um matemático a explicação era a seguinte: “Vejo uma superfície esférica, cor avermelhada, ao toque parece um material plástico fofo e resistente, tem umas letras escritas de cor branca---“. Em nenhum momento o matemático diz que se trata de uma bola de futebol ou de uma esfera. E tem razão. Não acredita?


Tirei a bola debaixo do braço (escondi parte da bola mostrado apenas umas das partes da superfície da bola) e para espanto de todos, eu não tinha uma bola de futebol. Tinha um objecto completamente diferente (clicar na foto).

 

A matemática só explica o que vê. Nada mais. A avaliação de tudo isto. A melhor possível. Matemática está em todo o lado, até no saco do lixo. Quando à noite colocar o saco do lixo fora pense que durante o dia esteve a manusear objectos, que não são mais do que sólidos geométricos.

 




Publicado/editado: 10/01/2012