O humorista e radialista Nuno Markl é o convidado do clube spm de março de 2017. A infância, a matemática, a rádio comercial, o seu filho Pedro, o cinema entre outros momentos fazem desta entrevista uma bela caderneta de... talentos. Em todas estas funções, o domínio é um conjunto de soluções corretas, num conjunto de chegada cheio de genialidade. A geometria desta entrevista leva-nos a um mundo divertido. Vamos ver como é a vida em Markl...
Em poucos “cálculos” como foi a sua infância?
Foi óptima. Quem ouça as minhas rubricas, como a Caderneta de Cromos, com todas as histórias que eu lá contava sobre bullying e sobre ser um caixa de óculos deprimente poderá ser levado a pensar que eu tive uma juventude complicada, mas tenho óptimas memórias de infância. Pronto: não cheguei a aprender a andar de bicicleta, mas de resto não tenho razões de queixa. Sim, sempre tive um pendor para as pequenas desgraças, e na altura vivia algo deprimido com isso; mas uma das coisas que tento passar aos miúdos que acompanham o que faço hoje em dia é: relativizem os vossos problemas. Podem parecer gigantes, hoje; mas amanhã vão conseguir rir-se deles.
O nome Markl é um nome raro como um bom problema de matemática. A raiz do nome vem...
Vem da Áustria. O meu avô, Friedrich Markl, era luso-austríaco. Quando comecei a sério na rádio, no Correio da Manhã Rádio, o meu editor, João Bugalho, disse-me que era um nome demasiado complicado não só para ser dito como para ser ouvido. Houve ali um instante em que parecia decidido que o meu nome, na rádio, ia ser Nuno Lobato, que é o apelido que vem imediatamente antes de Markl. Em cima da hora, ele voltou atrás: nunca me hei-de esquecer da frase "olha, em vez de Nuno Lobato, vamos avançar com Markl. É estrangeiro. É chique!"
A matemática na escola tinha vida em Markl?
Não tinha grande vida, não. Não quero sacudir a água do capote, mas acho, sinceramente, que foram raros os professores que tive capazes de tornar a matemática interessante, para mim. Sempre me foi vendida com uma aura de coisa chata e necessária. Mais tarde fui percebendo que há uma poesia nos números e que um bom professor pode tornar a matemática numa coisa maravilhosa para os alunos. Lembro-me de ver um filme que adoro, sobre matemática, o Pi, de Darren Aronofsky, e de ficar com inveja de não estar dentro daquele mundo. Agora aos 45 anos talvez já seja tarde...
O poeta e dramaturgo inglês William Shakespeare referiu que ”deixei de gostar da Matemática, depois que “x” deixou de ser sinal de multiplicação”. Foi o seu caso também?
Esse comentário do Shakespeare faz todo o sentido. Revejo-me muito nisso: quando a matemática começa a envolver letras para além de números é quando tudo se estraga, para mim. Acho eu. Por outro lado, sempre tive uma dificuldade do caraças nas tabuadas do 7 e do 8, e nessas ainda não entram letras. Sinto que tenho com a matemática a relação que tenho com alguma pornografia: estou a olhar para aquilo e pensar, "raios, adorava saber fazer aquilo".
A sua paixão pela rádio tem origem em que referencial?
Tem origem, antes de mais, no prazer que eu retirava de ouvir rádio. Tive a sorte de crescer numa idade de ouro, quer nas rádios nacionais - como a Comercial, com programas como Rebeubeu Pardais ao Ninho, Pão Com Manteiga, As Noites Longas do FM Estéreo, todos os do Júlio Isidro, do Luis Filipe Barros, do António Sérgio - quer na quantidade insana de rádios piratas que havia, e numa das quais - a Voz de Benfica, nas traseiras da casa da minha avó - acabei por descobrir que era aquilo que queria fazer.
As manhãs da comercial é um programa de rádio espetacular porque...
Porque acho que conseguimos um compromisso equilibrado entre trabalharmos para o grande público - a Comercial é líder de audiências há anos - e termos espaço para sermos fiéis à nossa criatividade. Essa combinação permite levar as nossas ideias, desde as mais certeiras até às mais experimentais e "ao lado", a uma quantidade muito grande de pessoas. E apesar de termos muitos ouvintes, conseguimos manter uma relação muito intimista e calorosa com eles. É o que faz da rádio um meio mais próximo e humano que a TV.
Estreou-se como ator em cinema no filme “A Bela e o Paparazzo” (2010), de António-Pedro Vasconcelos. Quem viu o filme percebeu que o Nuno é um excelente ator. Porque razão não investe mais tempo nesta área?
Porque, na verdade, talvez não seja o que quero fazer. Adoro escrever, adoro contar histórias. Pondero a possibilidade de realizar um filme escrito por mim, num futuro que espero não muito distante. O que aconteceu na Bela e o Paparazzo foi um encontro perfeito entre as palavras que o Tiago R. Santos, argumentista, escreveu, a direcção precisa do António-Pedro e uma personagem que, no fundo, podia ser eu se a vida me tivesse corrido de outra maneira. Eu passo os meus dias a pensar em ideias, muitas delas que acabo por pôr em prática de uma maneira ou de outra; a minha personagem d' A Bela e o Paparazzo também passa os dias a pensar em ideias, mas não tem exactamente onde as concretizar. Por isso, improvisa - daí aquela ideia maravilhosa do Tiago de criar um país num prédio. Adorei a experiência. Tenho genuínas saudades do ambiente das filmagens e do convívio com o António-Pedro Vasconcelos, o Marco D'Almeida, o Pedro Laginha e a Soraia Chaves. Acho que nos divertimos mesmo a fazer aquilo. Se aparecer outro projecto como actor no qual me sinta confortável, avanço. Há uns meses, o Tino Navarro convidou-me para participar noutro filme. Adorei o argumento mas tive de declinar amavelmente, senti que não estava à altura daquilo e que ia estragar e fazê-lo a ele e ao Joaquim Leitão perder tempo.
O seu filho Pedro é...
O Pedro é o maior. Assusta-me a velocidade a que o crescimento dele está a acontecer. Quando recebo uma sms dele do telemóvel da minha mãe a dizer "Papá, estou em casa da avó", tudo com os acentos no sítio e emojis, dou por mim a pensar, "chiça, há tão pouco tempo estava num berço". É avassalador. Dá-me grande alegria mas também faz cócegas no meu lado negro que pensa nele adulto, mais afastado de mim, e no meu próprio caminho para a decadência. E nesta nota bem divertida, avancemos para a próxima questão!
O homem que mordeu o cão poderia ser um professor de matemática?
Podia, pois. Há áreas da matemática que me parecem tão rebuscadas e alucinantes como grande parte das notícias bizarras que conto na rubrica. E pensar que ela já faz 20 anos. Pronto, vou começar outra vez a falar na cavalgada do tempo!
Porque é que a década de 80 deu uma bela caderneta de cromos?
É uma questão de fazermos das fraquezas forças. A minha geração veio depois da geração de coisas tão importantes como ter ideais, o Maio de 68, o 25 de Abril. Comparados com isso, os anos 80 foram uma palermice pegada. Mas foram a nossa palermice, e temos de a estimar: foi ela que nos formou, e foi incrivelmente colorida e divertida. E não foi só palerma: tivemos boa música, bons filmes, fomos talvez a última geração a apreciar a sério cada pedaço de entretenimento que nos era servido. Tínhamos dois canais, estreavam menos filmes, saíam menos discos. Termos tudo mais, hoje em dia, é óptimo; mas a apreciação das coisas passou a ser superficial e alucinante. Nós tivemos tempo para dissecar o Dartacão, para conhecer todas as faixas do Little Creatures dos Talking Heads, etc.
5 para a meia noite na RTP foi...
À distância, só consigo concentrar-me nas coisas boas. A liberdade para criar, as ideias delirantes que nos deixaram experimentar - foi uma aventura incrível. Enquanto estava a acontecer, tinha alguns momentos de pesadelo: é horrível fazer um programa que acaba perto da 1 da manhã quando, no dia seguinte, tinha de acordar às 6 para a rádio. E, como acontece frequentemente em muitos programas de humor, é muito fácil fazermos perder a paciência às equipas de produção e as equipas de produção a nós. Há um drama fundamental e difícil de resolver na criação de comédia televisiva: a produção quer avançar, porque tem mais que fazer; nós, que escrevemos um sketch e que o queremos fazer, sabemos que a comédia, para funcionar, tem de ser encenada com o máximo de perfeccionismo e rigor - de certa maneira, é matemática! - e não há muitas produtoras de televisão em Portugal com disponibilidade mental e de tempo para isto. Resultado: sinto que muito do que fizemos ficou aquém do que tínhamos imaginado. Mas o saldo é positivo, seja como for.
O matemático húngaro Alfred Rényi disse um dia que "quando estou infeliz trabalho matemática para ficar feliz. Quando estou feliz, trabalho matemática para me manter feliz". O que o faz feliz?
Há várias coisas que me fazem feliz, mas de entre as pequenas coisas, fazer Lego com o meu filho é um paraíso. Não só pelo gozo que dá construir um daqueles edifícios grandes e cheios de detalhes, mas porque aproveitamos estarmos ali os dois a construir para falar sobre a vida. É tempo de qualidade em todo o seu esplendor.