José Veiga de Faria - Entrevistado clube spm de novembro de 2017...

Clube Matemática da SPM - Clube Entrevista

José Veiga de Faria, professor de matemática é o entrevistado do clube de matemática da SPM de novembro de 2017. Uma vida dedicada à matemática, o gosto por esta ciência começou cedo devido essencialmente à intervenção positiva de bons professores. Habituado a resolver problemas difíceis ao longo da sua carreira, como foi o caso da viagem de Bissau até Buba, à noite, com mau tempo e sem radar, demonstra-o todos os meses através de bons problemas no clube spm. José Veiga de Faria, ex-professor do Técnico (IST), onde passou os melhores anos da sua vida, deixa-nos aqui uma entrevista com passado mas com os olhos postos no futuro, com uma geometria bem desenhada levada até si com régua e esquadro...

 

Em poucos cálculos como foi a sua infância?
Numa família tradicional. Durante o ano brincava muito com os meus primos em casa dos meus avós. Adorava andar de bicicleta e fazíamos frequentemente corridas e gincanas; tive o sonho de jogar hóquei em patins, mas nunca tive oportunidade de o concretizar, a minha prática não passou de uma brincadeira incipiente. Na adolescência dediquei-me ao ténis, gostei muito, joguei muito pela vida fora, inclusive cheguei a jogar pela equipa do IST em campeonatos nacionais, e aqui sim… ganhei algumas taças.

Como começou o gosto pela matemática?
O primeiro vislumbre de que a Matemática podia ser fascinante e divertida aconteceu no 7º ano, actual 12.º ano. Tive um professor, o professor Ruivo, inteligente e muito vivo, que colocava problemas divertidos que desafiavam a mente; lembro-me de um que na altura me empolgou: quantos desafios de futebol se podem fazer com 22 jogadores? Mas só percebi o que era a Matemática quando entrei para a Faculdade e tive a sorte de ter um professor de excepção: o Professor Arala Chaves. O Professor Arala Chaves deu um curso notável, de forma totalmente nova para a época (1963), em resumo ensinou Matemática como uma construção, de forma brilhante. Lembro-me das demonstrações que fazia em que simulava que não se lembrava das hipóteses e era no decorrer da demonstração e, à medida que necessitava dos resultados, as ia alinhando. E depois… os problemas que exigiam iniciativa e engenho e cuja resolução proporcionava enorme prazer. E ainda uma grande novidade para mim: apresentações às quartas-feiras à tarde feitas por alunos sobre temas fora do curso, mas relacionados com ele. Lembro-me de numa dessas sessões ter feito uma exposição sobre a construção dos reais a partir dos racionais recorrendo aos cortes de Dedekind. A atmosfera que criou era altamente motivadora, o nível muito alto. No fim do curso deu-me 19 valores. Foi um grande marco na minha vida e devo-lhe o ter despertado para a Matemática de que sempre tirei enorme satisfação. 

Lembra-se do momento em que decidiu ser professor de matemática?
Não houve um momento. Mas quem gosta de Matemática e sabe alguma coisa acaba por ser solicitado por alguém que precisa de ajuda ou tem curiosidade e depois embrenha-se.

Foi professor de matemática no IST. Como foi e o que ensinava?
Os tempos do Técnico foram dos melhores momentos da minha vida e seguramente os melhores da minha vida profissional. Quando entrei para o Técnico, como monitor, tive a sorte de encontrar o Professor Campos Ferreira que estava a fazer uma autêntica revolução no ensino da Matemática na instituição. Para ter um cheiro da jovialidade de espírito do professor Campos Ferreira relembro o que o ouvi dizer na altura: - "Se calhar não era má ideia substituir o exame de aptidão em Matemática para entrar no Técnico (estávamos em 1971) por uma redação sobre a Primavera!" Aprendi muito com ele e apoiou-me sempre muito. Nos primeiros tempos o Professor integrou-me num grupo de jovens assistentes, virgens da Matemática do passado: penso que fomos um apoio com que contou para realizar as tarefas de modernização do ensino que estava a empreender.  Nesse grupo fiz bons amigos que são hoje professores de grande mérito. Dei durante muito anos aulas teóricas e práticas de Cálculo e, algumas vezes, Álgebra Linear. Poder dizer aos alunos na primeira aula teórica de Cálculo I que tinham agora a oportunidade de começar do zero, ou quase, e conduzi-los desde a Axiomática dos Reais até ao Teorema Fundamental do Cálculo numa fascinante viagem em que noções e resultados iam aparecendo de forma lógica e natural e no decorrer da qual iam exercitando o raciocínio, aprendendo a pensar e a exercer o espírito crítico, procurando as soluções mais simples e mais belas para os problemas sempre me deu enorme gratificação. Se as aulas eram às oito da manhã ia depois trabalhar para a empresa com a alma cheia. Quando no fim algum aluno/a vinha ter comigo e dizia “gostei de ser seu aluno/a” tinha uma sensação feliz de ter conseguido despertar interesse numa mente jovem.

 

A matemática é aplicada a tudo no nosso mundo real...
A tudo não diria, mas, no mundo “civilizado” em que vivemos, e desde que acordamos, não deixamos de interagir com objectos que só foram possíveis conceber recorrendo à Matemática: acho que ninguém tem dúvida. Também a temos dentro de nós, mesmo que não saibamos, como têm todos os seres vivos. Dá que pensar a forma como, automaticamente, calculamos a trajetória da mão quando a enviamos ao encontro de outra que queremos apertar! E os animais também devem ter como sugere o nosso problema sobre as abelhas que pode ver aqui. Mesmo para temas fundamentais para existência humana como o bem e o mal, que têm a ver com regras ou orientações para a redução do sofrimento humano, já existem hoje alguns programas de inteligência artificial, bots, que dão algum contributo (pode ver aqui).

Em 1973 era imediato de um navio na Guiné e responsável pela navegação. Numa viagem nocturna de Bissau para Buba ficaram sem gerador e sem radar. A sua matemática resolveu...
Cá está, uma aplicação da Matemática. Um problema que parecia impossível: fazer a viagem de Bissau até Buba, à noite, com mau tempo e sem radar. O comandante chegou a dizer-me, à saída de Bissau, quando falhou o radar: - Oh! Imediato voltamos para trás. Um resultado simples de geometria elementar permitiu-me montar, com ajuda de dois elementos da tripulação, um processo para conseguir levar o navio a bom porto. Mas a história está contada aqui.

Lecionou  também no colégio S. João de Brito e trabalhou muitos anos na PT. Como foram essas ligações?
O Colégio S. João de Brito é um Colégio muito bom, com professores muito preparados e motivados e óptimas instalações. Estive lá, quando me reformei, poucos anos, por decisão minha, mas no tempo em que estive, e motivado pela excepcionalmente dedicada e competente Directora do Departamento de Matemática, Professora Dulce Dias, consegui criar um Clube de Matemática e um site para o Clube. Com o apoio do Director, Padre Amadeu Pinto, arranjámos uma sala para o Clube que equipamos com biblioteca, jogos, computadores, etc e o Clube teve muita vida. Foram organizadas apresentações feitas por alunos, algumas muito boas, tive a sorte de ter, na altura, alunos excepcionais, e foram convidadas pessoas de referencia para vir falar sobre temas da sua área. O Clube continuou a existir graças ao empenho da Professora Dulce e ao apoio do Professor António Valente que sucedeu como Director ao Padre Amadeu.
Na empresa a experiência foi completamente diferente: tratava-se, não de ensinar, mas de fazer. Aprendi muito, a vários níveis, mas nunca tirei a gratificação que consegui no ensino. 
Felizmente tive oportunidade de tirar o MBA na UNL, e com a sorte de o fazer num ano em que tive como professores pessoas como Russel Ackoff, pai da Investigação Operacional e, à data, considerado o número dois da gestão a nível mundial logo a seguir a Peter Drucker, Marshall Sarnat, grande Mestre de Finanças Internacionais, Lavary em Microeconomia, John O’Shaughnessy entre outros. Foi-me muito útil, principalmente o contacto com os professores americanos que tinham uma visão da vida de empresa radicalmente diferente do que existia na PT. Já fiz referência ao Professsor Ackoff num problema que pode ver aqui.

Gosta muito de jogar xadrez. Porquê?
O xadrez simula uma batalha. Como no ténis estamos sós perante um adversário e temos de o estudar, conhecer os pontos fortes e fracos, conceber a melhor estratégia e ajustar tácticas para o derrotar. Comecei a interessar-me quando segui o jogo de Kasparov contra o resto do mundo na net, com os lances comentados pela Judite Polgar, nos anos 90. Não sabia nada mas gostei. Depois um amigo meu, um mestre em xadrez, o Pedro Cardoso, falou-me dos livros de Yasser Seierawan. Gostei imenso e foi por aí que comecei a aprender: ainda agora tenho o Tactics ao alcance da mão.

O seu filho é a melhor solução da sua vida porque...
Não diria que é uma solução, mas é importantíssimo na minha vida: é filho único e está tudo dito. É uma pessoa excelente, íntegra, jogou ténis, duro, em competição, depois dedicou-se à natação e é um bom nadador que treina competição e chegou a entrar em provas. Com 23 anos está a terminar a tese de mestrado no IST do curso de Engenharia Electrotécnica e de Computadores. Nunca reprovou e tem uma média de curso excelente. Quando acabou a prova escrita da última cadeira telefonou-me, como fazia sempre, e disse: - não sei se dá para passar, aquilo é pouco definido. Uns dias depois ligou-me: tinha tido 19. Como é natural fiquei muito contente, era a cereja em cima do bolo… Mas, claro, como qualquer pai o que desejo é que seja feliz.

O matemático e os conteúdos na matemática mais fascinantes?
Para mim, e falando daqueles de que tenho algum conhecimento da vida e obra, Gauss, Newton e Ramanujan por razões diferentes. No caso de Gauss, no contacto que tive com as Disquisitiones Arithmeticae fiquei deslumbrado com a profundidade e beleza com que alinha resultados atrás de resultados: dizem que Dirichlet chegou a dormir com o livro debaixo do travesseiro!
Quanto ao conteúdo, sem dúvida, a Análise que é o que conheço melhor. O mundo da Matemática é hoje em dia um enorme oceano e dele conheço apenas uma pequena parte de uma pequena gota.

Gosta de futebol. É adepto do F. C. Porto. Mas vive em Lisboa…
Sou do FCP porque o sou desde os primeiros anos. A jogar futebol fui o Barrigana, o Carlos Duarte, o Hernâni e outros gigantes da altura. O FCP está dentro de mim. Mas não me revejo nos fanatismos dos dias de hoje e tenho pena que o futebol se tenha tornado num negócio muitas vezes muito pouco limpo.

Colabora com o clube spm desde o início.  Entre outras participações está a sua rubrica Problemas & Soluções que é já um clássico do clube SPM. Como tem sido a experiência?
Muito gratificante para mim: espero que também para os nossos leitores. Estou muito grato ao Professor Miguel Abreu, um grande Professor Catedrático do IST e que foi um grande Presidente da SPM, por se ter lembrado de me convidar. E, claro, a experiência só foi possível com este nível de satisfação pessoal graças à forma brilhante como os Professores Carlos Marinho e a Adília Gomes têm conduzido o Clube e ao espírito que lhe têm imprimido: tenho tido um enormissimo prazer em trabalhar com ambos. 

Entrevista realizada por Carlos Marinho
Publicado/editado: 01/11/2017