Entrevista com a matemática portuguesa Irene Fonseca

Clube Entrevista - Número 80

  

Irene Fonseca é uma matemática portuguesa com um enorme sucesso nos EUA. Desenhou com régua e esquadro o seu futuro, numa geometria que intersectou o seu gosto pela matemática com a sensibilidade que tinha pela arte. Escolheu os EUA como o seu lugar geométrico, fez deste conjunto de chegada o seu domínio, donde exerce funções variáveis com uma dimensão à escala mundial. De Portugal tem objetos e imagens bem definidas, neste conjunto lembra a sua família, amigos, os portugueses, o sol, o clima, a comida portuguesa. Os tempos livres não fazem parte do plano, são quase um conjunto vazio, uma vez que os poucos intervalos limitados são soluções para o seu trabalho.
Em cálculos bem simples fica aqui a entrevista cuja demonstração ocupa este espaço...

Nasceu em Lisboa. Como foi a sua infância? 
Nasci em Lisboa. O meu Pai era oficial da Marinha de Guerra e estava destacado em Moçambique numa missão hidrográfica, por isso, ainda bebé fui com a minha mãe e as minhas irmãs juntar-me ao meu Pai no que era então Lourenço Marques (agora Maputo). Regressei a Lisboa antes da escola primária e aí residi até ir para os EUA em 1981. A maior parte do meu ensino primário foi numa escola publica do Restelo, nessa altura era da primeira à quarta classe. O liceu era do primeiro ao sétimo ano, e fi-lo no Instituto de Odivelas até ao quinto ano, indo para o liceu D. João de Castro no sexto e sétimos anos. Foi uma infância sem sobressaltos, educada por ótimas professoras, e sempre muito virada para o desenho, gosto de desenhar desde que me conheço e, já em pequenina aproveitava as margens dos jornais para desenhar, sobretudo caras. À medida que fui crescendo a paixão pelo desenho e a pintura cresceu também, sendo a minha ambição torná-los a minha profissão. 

A sua paixão pela matemática tem origem em que altura?
Quando foi altura de decidir o curso a seguir, optei pela arquitetura na Escola das Belas Artes. Isto foi de certo modo um compromisso entre mim e o meu pai. Eu queria seguir pintura, o meu Pai, que tinha tido uma educação séria em matemática durante a Escola Naval, gostava imenso de matemática e, não tendo conseguido convencer as minhas duas irmãs mais velhas a seguir esse rumo, depositava em mim as últimas esperanças e tentava entusiasmar-me nessa direção. O meu interesse pela matemática durante o liceu era quase inexistente (diria mesmo que tinha notas razoáveis com alguma dificuldade), e dai o compromisso entre a pintura e a matemática: a arquitetura... 
Devo dizer, no entanto, que ainda pequena às vezes pegava nos volumes colossais do Vicente Gonçalves (suponho que seria o Curso de Álgebra Superior, 1953) pelos quais o meu pai tinha estudado no seu tempo na Escola Naval, e tentava resolver exercícios, simples curiosidade...

Iniciou o curso de arquitectura antes do 25 de abril...
Comecei o curso de arquitetura no Outono de 1973, dando-se no dia 25 de Abril de 1974 a revolução “dos cravos”. A Escola das Belas Artes, assim como outras faculdades no país, fechou as portas, e ao fim de um ano de inação, ainda com a Escola por abrir, o meu pai convenceu-me a ir para o curso de matemática na  Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa pois este, mesmo que de certa forma caótica, continuava a funcionar. A ideia era eu estar ocupada pela escola até a Escola das Belas Artes abrir, e como certamente não seguiria outro curso senão o de arquitetura, pouco importava se era matemática ou outra disciplina (da área das ciências) que me iriam entretendo até essa altura...

E é aí que se inscreve em matemática?
Sim. Juntamente com a minha amiga Ilda Peres da Silva. A Ilda é Professora do Departamento de Matemática da UL, que conheci durante o nosso breve período na Escola das Belas Artes, e cujo pai, por coincidência, era amigo do meu Pai dos tempos de África. O Departamento de Matemática era inicialmente alojado nas instalações do antigo Colégio dos Nobres na rua da Escola Politécnica. Após um incêndio que dizimou este edifício, ficamos alojados precariamente num prédio de apartamentos ao pé da Praça da Alegria, sem as mínimas condições. A seguir, puseram-nos nuns prédios relativamente novos (mas edificados para outros fins, donde mais uma vez sem as condições que hoje em dia consideramos necessárias para fins escolares e educativos) na Avenida 24 de Julho. E foi ainda aqui que terminei o meu curso, que naquela altura era de 5 anos, no verão de 1980.

E o gosto começou...
Como disse, comecei o curso de matemática em Outubro de 1975 só para me ir entretendo até a Escola das Belas Artes reabrir. No inicio não fazia grandes esforços para ir às aulas, mas quando chegou a altura das chamadas “frequências” (exames a meio do semestre), atendendo a que praticamente não fazia ideia do que era a matéria em causa, a Ilda e eu decidimos estudar a tempo inteiro durante as “férias de ponto” (duas semanas antes, se bem me lembro)... E assim foi. Tomei-lhe o gosto. Tive boas classificações nesses exames, e a partir daí conhecendo a matéria incentivava-me a querer saber mais... este é o principio da “bola de neve”...

Como reagiu a sua família quando decidiu estudar matemática fora de Portugal?
Para a minha família não foi surpresa. Era claro que eu queria continuar a estudar tirando o doutoramento, sempre encorajada pelo professor João Paulo Carvalho Dias que me tomou sob a sua tutela nos últimos anos do curso e, se bem que inicialmente considerei ir para Paris, rapidamente decidi ir para os EUA pois tinha um primo, Luís Magalhães a terminar o doutoramento em matemática na Brown e o meu cunhado Manuel Ricou estava na Universidade de Minnesota também a concluir o doutoramento em matemática. E foi para ai que eu decidi ir na primavera de 1981.

Em 2012 iniciou um mandato como Presidente da Sociedade Industrial e Aplicada sedeada em Filadélfia, nos Estados Unidos (SIAM). O que é o SIAM?
Com as novas tecnologias vamos adquirindo maturidade e “cloud computing” transformando radicalmente o mundo onde vivemos, com materiais inteligentes permeando a manufatura e as industrias da saúde e o SIAM desempenha um papel fundamental. Sendo a organização mundialmente mais proeminente nas áreas da matemática aplicada e da informática, SIAM tem a oportunidade única de liderar a investigação interdisciplinar de ponta e facilitar a ponte com as tecnologias e industrias inovadoras.  Ligando o mundo académico – aonde investigação fundamental e aplicada e desenvolvida – e a industria – aonde emergem aplicações ao mundo real – SIAM pode responder e resolver os desafios chave que a sociedade enfrenta.

Como define essa enorme tarefa da presidência do SIAM?
As atividades centrais da SIAM são asseguradas por um quadro de pessoal qualificado e pelo serviço prestado voluntariamente pelos seus membros. Como Presidente da SIAM eu identifiquei como áreas prioritárias a concentração dos meus esforços em dois “i”s the SIAM: um “i” tem a ver com o reforço da parceria com a industria, e o outro “i” com a internacionalização da sociedade. Em particular, no que respeita ao segundo “I” dediquei uma grande parte da minha presidência ao crescimento da presença de SIAM no Mundo através dos seus “student chapters”.  Em 2012 havia 102 student chapters e no fim do meu mandato, em 2014, havia 142, hoje ultrapassa os 176, com  126 na América do Norte, 26 na Europa, 17 na Asia, 4 na América do Sul, e 3 em África.

A SIAM tem mais de 13000 membros em todo o mundo. Como é agilizada esta articulação?
A SIAM encoraja a aplicação da matemática a engenharia, industria e sociedade, promovendo a investigação em matemática aplicada,  patrocinando revistas científicas e conferências. Tendo um quadro de pessoal excepcionalmente qualificado, e contando com a participação voluntária de muitos dos seus membros em posições de liderança na sociedade, a SIAM ajuda os seus membros a divulgar o seu trabalho o mais amplamente possível, reconhecendo talento através de prémios que celebram a investigação nos campos da matemática e da ciência computacional. Mas talvez um dos contributos mais importantes de SIAM seja a promoção de novas gerações de estudantes e investigadores através de uma crescente rede.

Na área da investigação, quais são os domínios que privilegia no seu trabalho?
O meu programa de investigação tem duas vertentes principais: o desenvolvimento de técnicas e métodos do  Cálculo das Variações e das Equações às Derivadas Parciais, a problemas do âmbito das ciências dos materiais e da visão por computador, ciência da imagem. Os meus projetos incluem o estudo matemático de “shape memory alloys”, materiais ferro elétricos, materiais magnéticos, materiais compostos, estruturas finas, transições de fase, e a análise matemática da segmentação de imagem, “denoising”, recolorarização, “inpainting” em visão computacional. 

É professora do Departamento de Ciências Matemáticas da Universidade de Carnegie Mellon, nos Estados Unidos, onde dirige o Center for Nonlinear Analysis. É uma responsabilidade que...
O Centro de Análise Não-Linear (CNA) tornou-se, há mais de 25 anos, num centro de renome mundial de pesquisa e pós-graduação em análise aplicada. A análise aplicada é uma área da matemática que abrange uma ampla gama de subdisciplinas, desde equações diferenciais parciais, até ao cálculo de variações e análise numérica e matemática computacional. Investigadores do CNA seguem áreas emergentes de análise aplicada, com atenção direcionada a desafios interdisciplinares em ciência e engenharia, incluindo problemas em ciência de materiais, ciência de dados e mecânica de fluidos. Os desafios de hoje em dia na saúde, no ambiente, no clima, na energia e na grande análise de dados dependem fortemente dos avanços na matemática aplicada através da modelagem, previsão, computação e validação. A análise não-linear é ubíqua no estudo de novos materiais, processamento de imagem e visão computacional, imagem médica (ressonância magnética, tomografia computadorizada, descoberta precoce de cancro, melhor administração de medicação), biologia de sistemas, automontagem de estruturas biológicas (vírus), cristais líquidos, nano estruturas (grafeno), finança, manufatura (concepção de protótipos, otimização de projetos, verificação de desenhos, produção), robótica, comunicação e transporte e o design de cidades inteligentes.

Quais as atividades se fazem na CNA?
As atividades do CNA incluem o treino de pós-doutorados, escolas de verão, workshops e um programa internacional de visitantes de pesquisa. O CNA possui uma extensa e forte rede internacional de colaborações e parcerias. A ponte com grupos de pesquisa de renome internacional é crucial para promover a transferência de conhecimento entre áreas, identificar questões matemáticas de ponta e manter a posição do CNA como um recurso mundial na supervisão alunos de doutoramento e treino de  bolsistas pós doutorais na interface de matemática, ciências físicas e engenharia.

Tem recebido diversos prémios com alguma assiduidade devido ao seu trabalho. Em 1997 foi condecorada pelo Presidente da República português com o grau de Grande Oficial da Ordem Militar de Sant´Iago da Espada. Como recorda este momento?
Extraordinário encontrar-me à sombra de gigantes, com família e amigos presentes, sob o olhar orgulhoso dos meus pais bem presente, com o reconhecimento dos meus pares e colegas. E sobretudo, passando assim o exemplo para as próximas gerações de meninas com algum jeito para as artes e algum talento para a matemática a ser descoberto.

O que faz nos seus tempos livres?
Não tenho muitos tempos livres, é uma escolha minha, mas quando tenho, jogo ténis, gosto de pintar aguarelas, vou ao ginásio, vou a Lisboa no Natal, ao Algarve no Verão. Gosto muito de ler mas faltam-me os tempos livres...

O que sente mais saudades da capital portuguesa e de Portugal?
Tudo! A família, os portugueses, o clima, a comida, o sol, as praias da Caparica e do Algarve, ...

O matemático Alfred Rényi disse um dia que “quando estou infeliz trabalho em matemática para ficar feliz. Quando estou feliz, trabalho em matemática para me manter feliz”.  O que a faz feliz? 
Uma linda família, bons amigos, colegas excepcionais, um excelente dia de praia, um teorema bem sucedido. 

                                                                                                                                                                                                   Por Carlos Marinho

Publicado/editado: 01/03/2018