Intersecções por Daniela Gonçalves

Clube de Matemática SPM - Março de 2018

       




"Intersecções" é uma rubrica onde se apresentará o resultado de cruzamento(s) de vários assuntos ou de várias ideias, a partir das Ciências de Educação. O conjunto que resultará desta operação será um produto com uma leitura amplificada, integrada e sustentada pelo(s) argumento(s). 


 Daniela Gonçalves - Professora do Ensino Superior



Intersecções por Daniela Gonçalves - Outras Possibilidades                     
Clube de Matemática SPM - Março de 2018                        

                      

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Título: Outras possibilidades...



José Gil começa assim a sua obra, Portugal, Hoje. O Medo de Existir: «É a vida. Esta frase com que o apresentador da RTP termina amiúde o Jornal da Noite dá o tema do ambiente mental em que vivemos. Dar o tom significa muito mais do que sugerir ou indicar uma direcção da leitura. Na realidade, constitui por si só uma visão do mundo e, mais importante, toda uma visão de nós mesmos, da nossa vida enquanto (tele)espectadores do mundo». Este é o mote ideal para iniciar esta reflexão, já que considero que a expressão - é a vida – conduz-nos ao ambiente em que muitos professores vivem: resignação que leva à impotência, a passividade, à inércia e ao imobilismo. 

Há vários anos que acompanho pessoas na sua prática pedagógica, presenciando e pressentindo algumas pequenas transcendências que constituem o efeito profundo do imperativo metafísico-moral: a pessoa é colocada dentro do mundo, mas ao mesmo tempo acima dele, como se o vivesse não o vivendo, neutralizando, desta forma, a ação e o pensamento.
Este pensamento impulsionou outras notas reflexivas, nomeadamente a questão do(s) sentido(s), alicerçadas em dois princípios que estão dentro da educação (ou do mundo) mas ao mesmo tempo acima dela. Recordo muitos dos momentos - estes surgem como tempos de reencantamento pela vida e pela educação, pela luta, pelo esforço, pela resistência por “outro mundo é possível” ou por a possibilidade de “outra educação”. Quando penso nesses espaços e tempos, recordo a certeza de que algo estava a acontecer e ainda acontece, embora não sejam coisas muitos visíveis. As respostas encontradas não foram muitas - talvez haja sempre mais perguntas do que respostas. Contudo, há a sensação de algo maravilhoso estar a acontecer... Há a crença de que “outro mundo é possível”.

É isto que une tantas pessoas! O desejo de transformar o mundo e a educação com as suas vidas, no sentido de contribuir para uma sociedade mais feliz, mais conhecedora, mais produtiva, mais justa, mais bela, mais sustentável.
 Mesmo não tendo muitas certezas, acreditamos no “mundo como possibilidade”, como defendia Paulo Freire, apesar das atrocidades que continuamos a assistir de forma mais ou menos passiva, olhando para o noticiário e dizendo: “É a vida... e é na Síria”, por exemplo. 

Acredito que os professores não podem ser correias de transmissão de decisões de outros ou distribuidores de conhecimentos, mas antes profissionais do humano, sujeitos de cultura e da sua história, analistas críticos, interpeladores, da realidade e sujeitos do sentido do seu próprio processo (e não só!).

Mas, não basta afirmar que outro mundo é possível ou que outra educação é possível. É preciso mostrar como.
 Educar para outros mundos possíveis, é o grande “lema” e/ou a grande intersecção... E as estratégias que utilizámos, tendo em conta um modelo educacional que compreende um equilíbrio entre competência e sentido: uma formação reflexiva que assenta numa atitude de questionamento sustentado por uma vontade de melhor agir para melhor conhecer; referentes teóricos de análise, saberes e teorias públicas; um domínio das metodologias apropriadas; um encorajamento e apoio (suporte afetivo - motivacional); perguntas pedagógicas (descrição, interpretação, confronto e reconstrução). Com que finalidade? De conhecer e conhecer-se para agir em situação, porque afinal ser professor reflexivo (sem medo de existir) é, na minha perspetiva, agir, pensando; é saber ter conhecimento e saber mobilizá-lo; é saber quem se é; é compreender as razões do nosso agir; é ter consciência do lugar que ocupamos; é ser-se comprometido, livre e responsável...

É educar para a emergência do que ainda não é, o ainda-não, a utopia. É educar e refletir para e sobre essa educação necessária para um outro mundo possível: o outro mundo possível é um mundo de aprendizagem em rede. O nosso mundo possível é um mundo onde todos podem perguntar, o mundo onde todos sabem pensar e por isso perguntam! E mesmo não tendo muitas certezas, arrisco e arrisco-me a afirmar o seguinte: é perguntando que o construiremos.

Paulo Freire fez-me sonhar e acreditar, porque falava a partir de um ponto de vista - o indivíduo-em-situação - , segundo o qual podemos pensar um novo paradigma humanitário e educacional, o sonho de um outro mundo possível, necessário e melhor. Este novo paradigma (holístico) opõe-se a uma visão antropocêntrica e faz da educação um espaço de formação crítica, uma aprendizagem que se vai construindo com outros modos de ser e de estar, progressivamente mais esclarecidos, mais conscientemente controlados e desse modo mais gratificantes, quer pessoal, quer profissionalmente. Portanto, considero que este sonho se inscreve no pressuposto da construção intrapessoal do conhecimento, através da ação/reflexão interpessoal, na resolução de situações concretas, integrando o conhecimento teórico referencial e o quadro pessoal de representações com conhecimento emergente da prática e que, como é óbvio, só nela reside. Deste modo, assistimos à intersecção entre teoria e prática num exercício de reflexividade que cumpre uma finalidade epistémica de construção partilhada e implicada de saberes. Insisto, por isto, num exercício de uma orientação reflexiva, ecológica, dialógica e, como tal, necessariamente ajustada caso a caso - modelo aberto e flexível que respeita o direito à singularidade e, consequentemente, permite processos evolutivos diferenciados que conduzirão a atos de ensino conscientes e responsáveis. É algo necessariamente inacabado e suscetível de (auto)regulação constante através de uma persistente atitude de questionamento. Enfim, é perguntando que o construiremos. Evitará certamente este espetáculo de desumanidade. Evitará certamente a expressão: “é a vida”. Evitará esta resignação: “é na Síria”. Implicar-nos-á a todos! 

Publicado/editado: 08/03/2018