N(eur)ónios por Tiago Fleming Outeiro - Ainda a pandemia: a (confusa) ciência da COVID-19

Eixos de Opinião de Junho de 2020

Tiago Fleming Outeiro - Director of Department of Experimental Neurodegeneration Center for Nanoscale Microscopy and Molecular Physiology of the Brain - University Medical Center Goettingen (Ver +)


Título: Ainda a pandemia: a (confusa) ciência da COVID-19 

Apesar de previsível, vivemos um momento ímpar das nossas vidas, com a pandemia da COVID-19. O mundo parou para tentar conter as infeções, e assim minimizar o impacto nos sistemas de saúde, e o risco da perda de vidas humanas. Infelizmente, a realidade dos números é mais dura do que gostaríamos, sendo que não sabemos ainda quantas mais vidas serão perdidas. 

Se, para uns, a perda de entes queridos é a realidade cruel da pandemia, para outros a realidade cruel da pandemia é a perda do emprego, que leva à perda de rendimentos que, por sua vez, despoleta graves problemas pessoais e familiares. Por tudo isto, é urgente que se encontrem novas formas de lidar com o agente invisível (o vírus), mas com um impacto tremendo na sociedade.

De forma inesperada (para os menos atentos), a ciência “entrou” na vida de todos nós, trazendo termos e conceitos que, até então, eram desconhecidos. Falamos no número de testes, no “r”, no pico da pandemia, em vírus, imunidade, vacinas, e num grande número de outras palavras que fazem parte de um jargão que, de repente, parecemos dominar. A ciência dá-nos uma confiança aparente, e dá-nos a esperança de que possamos vir a ter soluções de tratamento e prevenção, para que possamos retomar e continuar as nossas vidas de forma “normal”.

Mas aí surge o “o outro lado” da ciência... a ciência real e, por vezes, confusa. A ciência que, afinal, não sabe tudo, e “só sabe que nada sabe”. A ciência que, por ser ciência e por ser real, faz com que quem não é da ciência fique confuso, e deixe de acreditar na ciência.

Enquanto escrevo este texto, a OMS já mudou de posição umas 15 vezes quanto ao uso de máscara, e já recomendou/”desrecomendou” o uso da cloroquina umas 39 vezes. O ibuprofeno já foi desaconselhado e aconselhado para o tratamento umas 21 vezes, e a data para a existência de uma vacina já mudou umas 49 vezes, entre Julho de 2020 e nos 15 anos que se seguem. Já ouvimos dizer que os infetados assintomáticos transmitem a doença, e também que, afinal, não transmitem... já ouvimos dizer que devemos beber desinfetante ou lixívia para matar o vírus (bom, aqui não teve nada de científico por trás, mas sim pura ignorância...). A lista poderia continuar, mas penso que a ideia está clara: há muita confusão no ar!

No meio de tudo isto, importa então perceber aquilo que é conhecimento científico, e aquilo que é ruído, desconhecimento, e ignorância. E isto não é fácil no mundo em que vivemos, em que somos inundados de informação e desinformação, muitas vezes sem filtro.

Podemos perguntar-nos porque é que instituições de referência, como a OMS, a nossa DGS, e muitas outras, mudam de posição tantas vezes. Será que não trabalham com pessoas capazes e com conhecimento? Eu quero acreditar que sim, mas é inevitável ficar com dúvidas. Por isso, apresento aqui a minha interpretação da situação, para tentar ajudar a que não se deixe de acreditar na ciência, em que esta, e o conhecimento que gera, são o caminho para conseguirmos vencer a COVID-19.

Então porque mudam de posição estas organizações?

Esta é uma pergunta complexa, e a resposta depende da questão particular que colocarmos. Mas a explicação fundamental é que a ciência não sabe tudo. O conhecimento sobre o vírus que causa a COVID-19, e sobre a própria doença, é muito recente, tendo apenas uns 6 meses. Diariamente surgem novas descobertas, relatadas no meio científico, baseadas em estudos diferentes, envolvendo populações de doentes diferentes, em laboratórios diferentes, usando modelos diferentes, e feitos por investigadores diferentes. A ciência que estuda estes problemas biológicos não é matemática. A biologia não é uma ciência “exata”. Duas pessoas não reagem da mesma forma ao mesmo tratamento, ou ao mesmo ambiente. Nem mesmo dois gémeos!

Por ser uma doença recente, o conhecimento que estamos a gerar é ainda mais recente. E, por vezes, isto gera alguma confusão mesmo entre cientistas. 

Há temas em que podemos aceitar a confusão, pois ainda não foram estudados de acordo com o método científico adequado, que leva tempo, e que requer validação. Por isso pode haver alguma confusão quanto ao real efeito/benefício do uso da cloroquina ou do ibuprofeno, pois os estudos são escassos, não são feitos de forma randomizada ou “cega”, e demoram tempo. 

Outros temas há, no entanto, em que não devemos, nem podemos, aceitar a confusão: (i) beber desinfetante NÃO é solução para a pandemia; (ii) usar máscara e lavar as mãos de forma adequada SÃO boas medidas para reduzir o risco de infeção; (iii) dar a beijar a imagem de Jesus em lares de terceira idade (ou em qualquer grupo de pessoas) NÃO é apropriado; (iv) grandes aglomerados de pessoas (em festivais, manifestações, eventos religiosos, etc) NÃO devem ser aconselhados, e não se percebe porque uns parecem ser mais “seguros” do que outros...

O importante, no meio de toda esta confusão, é falar verdade. É ter cientistas a assumirem o que sabemos, e o que não sabemos, sem que os egos se sobreponham aquilo que é conhecimento real. É ser responsável e coerente. É isso que as pessoas merecem e esperam de quem tem responsabilidade. É isso que acontece? Não, nem sempre. Cabe-nos a nós, cientistas, informar e esclarecer, por forma a permitir que possamos sair desta pandemia saudáveis, confiantes, e sem confusões.

 

Publicado/editado: 23/06/2020