Contos de 3º Grau por Carlos Marinho - 6ª Parte de o dia das mentiras. Fim...

Contos de 3º Grau - História 27

Título: O Dia das Mentiras

Episódio I por Gonçalo F. Gouveia - Dia 1

Como bastas vezes sucede, tudo começou de forma inocente. Era o Dia das Mentiras e Aníbal Agapito, veterano das salas de aula e experimentadíssimo explicador de matemática, estava ‘agastado’ – como costumava dizer, o que lhe valera o cognome de Agapito Agastado. Apesar de ser Domingo de Páscoa, apesar de ter avisado vezes sem conta, apesar de ter implorado ao Senhor que o deixassem em paz, pelo menos neste dia, um dos seus discípulos – Agapito agastava-se com o termo ‘explicandos’ porque lhe recordava que a sua tarefa jamais terminaria – insistia, por telefone, em pedir-lhe um “esclarecimento urgente”. Como se qualquer esclarecimento não fosse urgente, considerando o que as cabeças dos seus discípulos tinham – ou por outra, não tinham – dentro! Irritadíssimo, afastou o telefone do ouvido e revirou os olhos, procurando acalmar-se antes de  responder. E foi esse passeio ocular, associado  ao dia do calendário e a um impulso obscuro, que desencadeou a resposta que iria correr tão mal: “Meu rapaz, compreenda, não  sou  o  professor Agapito, sou o   irmão,   e lamento informar que   o  professor Agapito faleceu agora mesmo.”

Episódio II por José Carlos Pereira - Dia 6

Ser dia 1 de Abril era a desculpa ideal para a mentira que acabara de contar. Afinal já perdera a missa, algo impensável para um católico cumpridor das suas obrigações cristãs, e ainda por cima a sucessão de telefonemas que estava a receber naquele dia eram seguidos de perguntas idiotas:

- “Professor, 1 + 1 é igual a 2? Porquê?”

- “Mestre, 1 é um número primo?”

- “Como se calcula o perímetro de um quadrado?”

Agapito estava cansado e irritado, ou como ele gostava de dizer estava “piurso”! Como é que alunos na fase final do secundário, prestes a enfrentar um exame, lhe estavam a fazer este tipo de perguntas? Todo o trabalho que desenvolveram ao longo dos anos não tinha servido para nada? Tudo lhe parecia um absurdo, ou estava a ter um pesadelo ou os seus discípulos estavam a ser malandros. Afinal era o dia das mentiras! 

Episódio III por Francisco Fernandes - Dia 11

   

Agapito teve então uma nova ideia: “Agora, sem mim, quero ver como irão resolver todas aquelas questões!” – disse ele em voz alta, enquanto se preparava para sair à rua. E assim, manteve-se firme e resolveu dar vida à sua mentira.  
Vestiu-se com roupas diferentes das que normalmente usava, escolheu as roupas mais coloridas do seu armário, evitando as monocromáticas do dia a dia, que caracterizavam o seu estatuto de rigoroso professor de Matemática. Colocou um bigode postiço, adereço carnavalesco que encontrou no quarto do seu filho e saiu para a rua determinado em enganar os conhecidos por quem passasse.
Entrou no seu café habitual. O empregado de mesa aproximou-se e não o reconheceu. Agapito estava feliz! Seria aquele o dia em que poderia estar descansado, sem que ninguém o importunasse com dúvidas matemáticas. 

Episódio IV por José Veiga de Faria - Dia 16

E, com o sentimento de estar nas nuvens, pensava:
- Que grande ideia esta de me disfarçar de quase palhaço … os palhaços não despertam ódios nem invejas, mas antes um sorriso pela graça, desconcerto, abandono e insignificância que inspiram misturados com doces recordações que todos guardamos da infância e com uma certa ternura por nós próprios pois todos temos o nosso coeficiente de palhaço. O velho Descartes, que tanto alívio sentia com a anonimidade em Amesterdão, bem gostaria de ter tido esta ideia genial.
E ao sentar-se não queria acreditar:
- Cá está, nem de propósito, que pratinho eu vou gozar e em que sarilhos estaria metido se não fosse este disfarce. Vejam só, em mesas pegadas, a minha mulher, a Sónia o meu conforto na vida há vinte anos, o Fernando meu colega e grande amigo da escola e, vejam só, o Beto e o Carlão dois dos meus piores e terríveis alunos. Posso sentar-me perto e gozar de fininho, ia reflectindo.
Pediu um café e apurou os ouvidos. A mulher estava a falar com a sua grande amiga Sílvia:
 - … está insuportável, já não o posso aturar, não fora o João (aqui Agapito ficou sem pingo de sangue…) já lhe tinha posto os patins.
E da mesa do outro lado a Sónia:- …o parvo pensa que estou caída por ele! Não fosse…
E o colega:  - … esse convencido do Agapito está mesmo a pedi-las…    E o Beto para o Carlão:
 - … gaaaandeee noite no BetClic, aquela foto que tiraste ao cartão do prof enquanto ele me explicava quanto era 2 a dividir por zero! Grande Aníbal e grande rombo, o prof Agapito está depenado e frito  ….

Episódio V por Sílvio Gama - Dia 21

Agapito não acreditava no que ouvia. Ninguém, nem mesmo a mulher, que dizia aquilo dos patins, parecia importar-se com ele. Se desaparecesse ninguém sentiria a sua ausência e, se alguém sentisse, seria por falta de mais um tema de conversa. Com uma lágrima contida e uma voz quase a soluçar, lá pediu um café. No instante em que o empregado de mesa o servia, um alarido, provocado por 3 clientes, instalou-se no café, ouvindo-se:
- ... tu acreditas que o último Euromilhões foi registado aqui na vila? Está aqui escrito no jornal que saíram os números 1, 2, 3, 6 e 8, e as estrelas foram 5 e 8... a um único totalista que ... que... vai arrecadar cerca de 120 milhões de Euros.”
Um silêncio enorme fez-se na cabeça de Agapito. Tranquilamente, levantou-se, deixando uma moeda de um Euro na mesa. Aqueles números sortudos correspondem aos 7 primeiros algarismos do perímetro de uma circunferência de raio unitário: 2 = 6.283185... os eternos algarismos onde Agapito sempre apostava.

Episódio VI por Carlos Marinho - Dia 26

Agapito não sabia se devia rir ou chorar. Se devia gritar ou estar em silêncio. No bolso interior direito do seu casaco moravam 120 milhões de euros. Um só papel valia tanto papel. O seu pobre coração estava em fanicos...
Todos os seus alunos, mulher e amigos sabiam que Agapito apostava todas as semanas naqueles números. Nisto, quando ele vai a sair do café, a mulher Joana chama-o:
- Agapito, onde vais?
Agapito, algo surpreendido disse:
- Como... como me reconheceste... sabes que me saiu o Euromilhões!
Todos no café começaram a rir. 
- Foi uma brincadeira de 1 de abril. É mentira! Quisemos brincar contigo!
Agapito deu um grito. O seu coração entrou em colapso. Tinha ficado pobre de novo.
- Oh, não! Não me saiu?
- Claro que não! Deixa lá. Foi só uma brincadeira.
Agapito suspirou...
Nisto entra Joel, o seu explicando aos gritos no café...
- O professor Agapito morreu. O seu irmão acabou de me dizer. Logo, agora que lhe saiu o Euromilhões, 120 milhões. Sairam mesmo agora os números.
O dono do café ligou a televisão e lá estava a apresentadora a debitar os números...
Aníbal Agapito caiu para o lado...

FIM 

 
Publicado/editado: 26/04/2018