Contos de 3º Grau por Gonçalo Gouveia - 6ª História - Voo 737 Max - Quaterniões a Bordo - Fim

Contos de 3º Grau Fevereiro 2020

6ª História - Voo 737 Max - Quaterniões a Bordo - Fim

 Dia 1 - Adília Gomes

Sete e meia da manhã, João Casinhas, piloto experiente de uma das melhores companhias de aviação do mundo preparava-se para levantar o boeing 737  Max com mais de 200 pessoas a bordo. Por instantes recordou que os seus tempos de estudante. Na faculdade, o professor Francis sabia que ela tinha uma paixão pela aviação. Ensinou-lhe o capítulo da matemática que fazem os aviões voarem - os quaterniões. Que saudades! - Pensava ele. Recordou o matemático Hamilton, que no século XIX, num momento de inspiração numa caminhada realizada junto ao Royal Canal com a sua mulher, reformou uma ideia que persistia há séculos. Descobriu que a propriedade comutativa da multiplicação não era necessária para uma álgebra consistente. Esta descoberta fez com que a sua dedicação fosse total aos quaterniões para o resto da sua vida. Tal e qual ele, se dedica agora aos aviões por pura paixão. Um dos instrumentos principais de voo que se encontra no cockpit dos aviões corresponde ao Heading and Attitude indicator que dá ao piloto uma informação contínua do estado do avião relativamente a um local na superfície terrestre. Lindo! Este aparelho relata em cada instante a orientação do referencial no avião para um referencial posicionado num local da Terra. Bela matemática. Agora está na hora de levantar voo...

 Dia 6 - Francisco Fernandes

João Casinhas informou a comissária e as hospedeiras que deviam executar os procedimentos para a descolagem.
No interior do avião já se sentia nalguns passageiros aquilo frio no estômago que antecede cada viagem.
Posicionados nos seus locais habituais, a tripulação inicia o ritual das indicações a efetuar, quando de repente são interrompidos pelo intercomunicador: "Daqui fala o comandante João Casinhas. Infelizmente a torre de controlo informou-me que não podemos levantar. Todos as partidas para a China estão canceladas devido à quarentena provocada pelo CoronaVírus. Queiram permanecer calmos e tranquilos nos vossos locais a aguardar novas instruções."
A confusão instalou-se no avião. Passageiros barafustavam com a tripulação. Ninguém sabia do que se tratava. No cockpit Casinhas só pensava: "Tanto cálculo, tanta matemática e com esta probabilidade não estava eu à espera desta, nem o Baynes conseguia prever". O que fazer agora...

 Dia 11 - Carlos Marinho

Enquanto esperavam, o comandante Casinhas virou-se para o seu copiloto e perguntou-lhe: - Como está o teu filho? Ele sempre gosta de matemática?
Jorge Salcedas respondeu: - Ele adora matemática. Está a pensar em tirar uma licenciatura em matemática pura. Depois seguir para os Estados Unidos, para fazer o doutoramento.
Casinhas questionou: - Mas, ele não quer ser piloto como o pai?
Salcedas: - Penso que não! Eu também não o pressiono. Ele vai ser o que quiser. Se quer ser matemático... ele diz que só é feliz a trabalhar matemática. A professora dele de 12º ano diz que o rapaz é um génio.
Casinhas, não perdeu a oportunidade: - Sai ao pai! Não era tu que eras o génio da matemática e da física?
Salcedas devolveu o elogio: - E tu, com um simples raciocínio, mudavas as aulas de matemática.
Riram juntos. Belos tempos! Nisto, recebem a ordem da torre de controlo. Afinal, o vírus não ia "constipar" a viagem.
O copiloto, Salcedas abrui o microfone  e falou para a cabine: - Temos boas notícias. Dentro de instantes, iniciaremos a viagem a caminho de Pequei. Boa viagem!

  Dia 16 - Inês Guimarães

Ouviram-se suspiros de alívio por toda a cabine do avião. As palavras do copiloto surtiram nos passageiros um efeito tranquilizante. No veículo encontravam-se muitos homens e mulheres com negócios importantes a tratar no destino. No entanto, subitamente, João Casinhas, um indivíduo de descendência africana, ficou pálido como uma couve-flor. 
- Jorge, não tenho coragem de fazer isto. É um erro – desabafou.
- O quê? O que é que estás para a aí a dizer? Pensei que já não consumisses mais... daquilo... depois daquela vez em que...
- Não sejas idiota. Nunca iria comprometer a segurança dos passageiros dessa maneira! Aliás, por isso mesmo é que ficaria com um enorme peso na consciência se levasse esta gente toda ao antro do vírus. Já me chega ter perdido o meu pai para uma pneumonia. Casinhas olhou para o teto para evitar a queda de uma lágrima.
- Ouve-me com muita atenção – interveio Salcedas. As ordens da torre de controlo são para cumprir. Os passageiros que entraram neste avião vão por sua conta e risco; o teu compromisso é simplesmente levá-los em segurança até ao destino. O resto é com eles. 
- Mas... é demasiado arriscado... Tu bem sabes que o vírus pode ser fatal para crianças e idosos! E certamente estás a par dos modelos matemáticos de propagação do mesmo. Embora estejam em jogo demasiadas variáveis para as previsões científicas serem exatas, a disseminação do vírus tem um comportamento exponencial! 
O tempo passava. Começavam a surgir questões da cabine em relação ao atraso na descolagem.

 Dia 21 - José Veiga de Faria

Salcedos não sabia o que dizer… não sabia mesmo... Que raio, estes gajos não se importavam de arriscar a vida para ganhar mais uns tostões?! A menos que … estivessem entalados e fosse um caso de sobrevivência económica, tivessem na manga um verdadeiro negócio da china ou … menos prezassem o perigo. 
Lembrando-se, muito vagamente, das noções muito elementares de probabilidades decidiu montar um teste para distribuir pelos passageiros, fácil de responder e analisar,  cujo resultado, comunicado ao pessoal a bordo, os ajudasse a tomar uma decisão colectiva.
Concentrou-se até fumegar e escreveu num papel esta fórmula tosca:

Valor Voo=p×N-q×r×V

E anotou para que todos percebessem:
 p= probabilidade de o negócio se realizar; N = Valor da negociata
 q= probabilidade de apanhar o vírus; r probabilidade de morrer tendo apanhado o vírus; V= Valor da Vida
Explicou o seu plano ao colega e disse-lhe que o ia comunicar à Torre de Controle: iam ver se a média das respostas era positiva ou negativa.

 Dia 26 - Gonçalo Gouveia

Alguns segundos depois, na torre de controlo, levantou-se um braço em sinal de alarme. Varela, um supervisor de controlo com décadas de experiência reagiu célere e questionou o controlador: «Situação?». O controlador visado olhou-o com evidente embaraço e retorquiu hesitante: «Temos o piloto do 367 tango zulu que vai proceder a um inquérito matemático para decidir se levanta voo…» Varela não mexeu um músculo enquanto o seu cérebro tentava encontrar um significado para aquela frase. Trinta e cinco anos de irrepreensível profissionalismo esfumaram-se numa consternação irreprimível: «Passa-me esse piloto erudito!» vociferou. O controlador pôs Casinhas em alta voz. «Ouça lá, vai fazer um teste matemático?!, berrou Varela. Seguro de si, Casinhas explicou a situação e reiterou que não levantava voo sem uma resposta ao inquérito. Mas nem a imprensa, nem o mundo ficaram a par desta ocorrência bizarra no voo 367 tango zulu para a China. Porque o supervisor Varela resolveu a situação pedindo para falar diretamente com os passageiros. E limitou-se a colocar-lhes as seguintes opções: «Preferem voar imediatamente ao encontro de uma epidemia, ou responder a um inquérito sobre probabilidades matemáticas que envolvem quaterniões?». A resposta foi unânime e o avião levantou de imediato.

 

Fim do Episódio

Publicado/editado: 29/02/2020