Contos de 3º Grau por Sílvio Gama - 5ª Parte de o dia das mentiras...

Contos de 3º Grau - História 27

Título: O Dia das Mentiras

Episódio I por Gonçalo F. Gouveia - Dia 1

Como bastas vezes sucede, tudo começou de forma inocente. Era o Dia das Mentiras e Aníbal Agapito, veterano das salas de aula e experimentadíssimo explicador de matemática, estava ‘agastado’ – como costumava dizer, o que lhe valera o cognome de Agapito Agastado. Apesar de ser Domingo de Páscoa, apesar de ter avisado vezes sem conta, apesar de ter implorado ao Senhor que o deixassem em paz, pelo menos neste dia, um dos seus discípulos – Agapito agastava-se com o termo ‘explicandos’ porque lhe recordava que a sua tarefa jamais terminaria – insistia, por telefone, em pedir-lhe um “esclarecimento urgente”. Como se qualquer esclarecimento não fosse urgente, considerando o que as cabeças dos seus discípulos tinham – ou por outra, não tinham – dentro! Irritadíssimo, afastou o telefone do ouvido e revirou os olhos, procurando acalmar-se antes de  responder. E foi esse passeio ocular, associado  ao dia do calendário e a um impulso obscuro, que desencadeou a resposta que iria correr tão mal: “Meu rapaz, compreenda, não  sou  o  professor Agapito, sou o   irmão,   e lamento informar que   o  professor Agapito faleceu agora mesmo.”

Episódio II por José Carlos Pereira - Dia 6

Ser dia 1 de Abril era a desculpa ideal para a mentira que acabara de contar. Afinal já perdera a missa, algo impensável para um católico cumpridor das suas obrigações cristãs, e ainda por cima a sucessão de telefonemas que estava a receber naquele dia eram seguidos de perguntas idiotas:

- “Professor, 1 + 1 é igual a 2? Porquê?”

- “Mestre, 1 é um número primo?”

- “Como se calcula o perímetro de um quadrado?”

Agapito estava cansado e irritado, ou como ele gostava de dizer estava “piurso”! Como é que alunos na fase final do secundário, prestes a enfrentar um exame, lhe estavam a fazer este tipo de perguntas? Todo o trabalho que desenvolveram ao longo dos anos não tinha servido para nada? Tudo lhe parecia um absurdo, ou estava a ter um pesadelo ou os seus discípulos estavam a ser malandros. Afinal era o dia das mentiras! 

Episódio III por Francisco Fernandes - Dia 11

   

Agapito teve então uma nova ideia: “Agora, sem mim, quero ver como irão resolver todas aquelas questões!” – disse ele em voz alta, enquanto se preparava para sair à rua. E assim, manteve-se firme e resolveu dar vida à sua mentira.  
Vestiu-se com roupas diferentes das que normalmente usava, escolheu as roupas mais coloridas do seu armário, evitando as monocromáticas do dia a dia, que caracterizavam o seu estatuto de rigoroso professor de Matemática. Colocou um bigode postiço, adereço carnavalesco que encontrou no quarto do seu filho e saiu para a rua determinado em enganar os conhecidos por quem passasse.
Entrou no seu café habitual. O empregado de mesa aproximou-se e não o reconheceu. Agapito estava feliz! Seria aquele o dia em que poderia estar descansado, sem que ninguém o importunasse com dúvidas matemáticas. 

Episódio IV por José Veiga de Faria - Dia 16

E, com o sentimento de estar nas nuvens, pensava:
- Que grande ideia esta de me disfarçar de quase palhaço … os palhaços não despertam ódios nem invejas, mas antes um sorriso pela graça, desconcerto, abandono e insignificância que inspiram misturados com doces recordações que todos guardamos da infância e com uma certa ternura por nós próprios pois todos temos o nosso coeficiente de palhaço. O velho Descartes, que tanto alívio sentia com a anonimidade em Amesterdão, bem gostaria de ter tido esta ideia genial.
E ao sentar-se não queria acreditar:
- Cá está, nem de propósito, que pratinho eu vou gozar e em que sarilhos estaria metido se não fosse este disfarce. Vejam só, em mesas pegadas, a minha mulher, a Sónia o meu conforto na vida há vinte anos, o Fernando meu colega e grande amigo da escola e, vejam só, o Beto e o Carlão dois dos meus piores e terríveis alunos. Posso sentar-me perto e gozar de fininho, ia reflectindo.
Pediu um café e apurou os ouvidos. A mulher estava a falar com a sua grande amiga Sílvia:
 - … está insuportável, já não o posso aturar, não fora o João (aqui Agapito ficou sem pingo de sangue…) já lhe tinha posto os patins.
E da mesa do outro lado a Sónia:- …o parvo pensa que estou caída por ele! Não fosse…
E o colega:  - … esse convencido do Agapito está mesmo a pedi-las…    E o Beto para o Carlão:
 - … gaaaandeee noite no BetClic, aquela foto que tiraste ao cartão do prof enquanto ele me explicava quanto era 2 a dividir por zero! Grande Aníbal e grande rombo, o prof Agapito está depenado e frito  ….

Episódio V por Sílvio Gama - Dia 21

Agapito não acreditava no que ouvia. Ninguém, nem mesmo a mulher, que dizia aquilo dos patins, parecia importar-se com ele. Se desaparecesse ninguém sentiria a sua ausência e, se alguém sentisse, seria por falta de mais um tema de conversa. Com uma lágrima contida e uma voz quase a soluçar, lá pediu um café. No instante em que o empregado de mesa o servia, um alarido, provocado por 3 clientes, instalou-se no café, ouvindo-se:
- ... tu acreditas que o último Euromilhões foi registado aqui na vila? Está aqui escrito no jornal que saíram os números 1, 2, 3, 6 e 8, e as estrelas foram 5 e 8... a um único totalista que ... que... vai arrecadar cerca de 120 milhões de Euros.”
Um silêncio enorme fez-se na cabeça de Agapito. Tranquilamente, levantou-se, deixando uma moeda de um Euro na mesa. Aqueles números sortudos correspondem aos 7 primeiros algarismos do perímetro de uma circunferência de raio unitário: 2 = 6.283185... os eternos algarismos onde Agapito sempre apostava.

Episódio VI por Carlos Marinho - Dia 26

FIM 

 
Publicado/editado: 21/04/2018