(U)Ma Temática Elementar por José Carlos Santos - De paradoxo a Teorema

Eixos de Opinião - Março de 2018

  

A Matemática elementar tem muito que se lhe diga. Embora nos seja familiar, é sempre possível encará-la de um ponto de vista novo ou inesperado. José Carlos Santos - Departamento de Matemática da FCUP.                                          

Dia 21 de cada mês

 

 

                

Título: De paradoxo a Teorema

Quem gosta de Matemática, geralmente gosta de paradoxos e vice-versa. Vejamos um exemplo de um tal paradoxo, o paradoxo de Richard. Este paradoxo foi criado pelo matemático francês Jules Richard, em 1905.

Consideremos todas as expressões em português que definam um número real. Alguns exemplos de tais expressões (e dos números correspondentes) são:

•    «O número zero»: 0;
•    «O maior inteiro menor que zero»: –1;
•    «O menor número primo maior que dez»: 11;
•    «A diagonal do um quadrado de lado dois»: raiz quadrada de 8.

E assim por diante. Naturalmente, expressões diferentes podem definir o mesmo número. Por exemplo, o número 11 também é definido pela expressão «O menor número natural em cuja representação decimal um algarismo aparece mais do que uma vez». Mas note-se que estamos a falar de expressões que definem um número e não vários.

Em seguida, ordenemos essas expressões. Para começar, são ordenadas por tamanho. Por exemplo, a expressão «O número zero» vem antes de «O maior inteiro menor que zero», pois é mais curta. E se duas expressões tiverem o mesmo tamanho? Aí usa-se a ordem lexicográfica, ou seja a ordem do dicionário. Por exemplo, a expressão «O maior inteiro menor que dois» vem antes de «O maior inteiro menor que zero».

E o que é que obtemos depois disto? Uma lista (infinita, naturalmente) de expressões, cada uma das quas define um número real.

Agora, consideremos a seguinte expressão: «O número real cuja parte inteira é zero e cujo n-ésimo algarismo a seguir à vírgula é 1 caso o n-ésimo algorismo do n-ésimo elemento da lista não seja 1 e é dois caso contrário.» Esta expressão define um número real de uma maneira clara e não ambígua. Então este número tem que estar na nossa lista. Mas não pode estar! Pela própria maneira como o número foi definido, não pode ser o primeiro elemento da lista, nem o segundo e assim sucessivamente. E este é que é o paradoxo de Richard.

E qual é a causa do paradoxo? O problema está em que falar em «expressão que define um número real» é algo ambíguo. Era precisamente isto que Jules Richard queria ilustrar.

Poder-se-ia pensar que este paradoxo é somente um entretenimento para quem não tem melhores coisas nas quais ocupar o seu tempo. Mas em 1931 Kurt Gödel publicou o seu famoso teorema da incompletude (de facto, são dois teoremas e não um). E aí ele menciona o paradoxo de Richard como um análogo do fenómeno da incompletude.

 

Publicado/editado: 23/03/2018