Ideias não Orientáveis por Inês Guimarães - A primeira vez

Eixos de Opinião de Junho de 2020

Inês Guimarães - Aluna de Mestrado em Matemática e Autora do Canal MathGurl no YouTube


Título: A primeira vez

A matemática é uma área em que a estética é muito valorizada. Já dizia Hardy: “there is no permanent place in the world for ugly mathematics”. É claro que a beleza é subjetiva e quem não trabalha na área provavelmente não compreende o porquê de alguns resultados e demonstrações serem considerados belos ou elegantes. Ainda assim, recorrendo a analogias, espero que a minha perspetiva sobre o assunto faça sentido na cabeça de qualquer um.

Pensem no seguinte: como é que um chef de cozinha (daqueles que podem cobrar 50 paus por garfada) é capaz de criar comidas tão criativas e saborosas? Duvido que a ideia para uma receita de sucesso lhes surja em cinco minutos enquanto estão na casa de banho; e, mesmo que concetualmente pareça algo promissor, na prática pode não resultar. Como tudo na vida, um produto final de qualidade só é alcançado após serem efetuadas múltiplas tentativas e cometidos vários erros. 

Embora eu não seja, de todo, uma expert na área, creio que, em matemática, o processo de criação funciona de forma semelhante. Quando um resultado é demonstrado pela primeira vez, provavelmente surgirão provas mais elegantes a seguir. Contudo, do mesmo modo que métodos culinários mais ancestrais originam comidas bastante saborosas, há demonstrações matemáticas mais antigas que, a meu ver, são mais ricas do que as soluções modernas que usufruem da tecnologia de ponta. Todos temos um carinho especial por aquele tacho da avó que foi acumulando ranço ao longo das décadas...

Por tudo isto, eu acho que é muitíssimo benéfico e pedagógico lermos os artigos originais que contêm os teoremas e demonstrações que nos interessam no momento. Um problema dos livros modernos é que as provas que lá surgem são uma versão extremamente polida das primordiais (por vezes, até tomam um rumo completamente diferente). É evidente que esta abordagem tem a vantagem de produzir demonstrações mais curtas e limpas; no entanto, sofre de um problema gravíssimo — ao lê-las, uma pessoa só pensa “como raio é que alguém se lembrou de fazer isto?!”, pois há uma grande perda de espontaneidade. Ao regressarmos às origens das ideias, temos o prazer de testemunhar o desenrolar natural dos assuntos, e os passos das demonstrações costumam ser mais motivados e intuitivos. Quando bem escritos, os documentos pioneiros permitem-nos ter acesso ao modo de pensar dos grandes mestres que os escreveram, o que é inspirador. Leonhard Euler e Hermann Weyl, por exemplo, tinham jeito para a coisa.

Todavia, esta estratégia nem sempre é fácil de pôr em prática. Além da falta de tempo de que dispomos para a levar a cabo, artigos antigos são difíceis de encontrar e é frequente só estarem disponíveis na língua em que foram redigidos. À custa disso, ao preparar uma apresentação para uma cadeira da faculdade, não tive alternativa senão aprender um pouco de eslovaco para entender uma prova de um artigo de Jan Černý... 

Enfim, gostava que existissem livros que não apresentassem somente a versão final dos produtos! Quero perceber o caminho percorrido até lá chegar, o encadeamento real das ideias e não só engolir uma sequência lógica de lemas e definições. Sinceramente, se o leitor não se der ao trabalho de refletir e tentar compreender o porquê de aparecer agora esta definição, o porquê de se efetuar este passo a seguir a este, etc., a matemática vai parecer simplesmente um conjunto de respostas a perguntas que ninguém fez. Esta mania de varrer pormenores para debaixo do tapete, e de suprimir as motivações que levaram ao nascimento dos conceitos, faz com que seja difícil de penetrar na área e só contribui para que esta seja etiquetada como “irrelevante”. Sempre ouvi dizer que o caminho é mais importante do que o destino, por isso, considero que viveríamos num mundo melhor se mais pessoas se permitissem ser vulneráveis e fundamentassem os passos de magia negra que surgem naquilo que redigem. 

A primeira vez nem sempre é perfeita, mas é sempre especial.

Espero que tenham gostado deste artigo e, se o quiserem comentar, passem pela página de Facebook do Clube de Matemática. Se me quiserem chatear, escrevam para inesguimaraes42@gmail.com.

Muito obrigada e até daqui a um mês!

Publicado/editado: 19/06/2020