N(eur)ónios por Tiago Fleming Outeiro - A “ficção” que agrava um pesadelo familiar

Eixos de Opinião de Abril de 2020

Tiago Fleming Outeiro - Director of Department of Experimental Neurodegeneration Center for Nanoscale Microscopy and Molecular Physiology of the Brain - University Medical Center Goettingen (Ver +)


Título: A “ficção” que agrava um pesadelo familiar

O mundo passa por um momento ímpar da sua história. Vivemos, até há algumas semanas, num mundo globalizado, impulsionado pela economia, pela doentia obsessão pelo crescimento. Um mundo a adoecer, poluído, a dar sinais de estar a chegar ao seu limite, e onde os recursos naturais estavam ameaçados. Esquecemos, enquanto sociedade, de olhar para muitos dos sinais que o planeta nos dava e, freneticamente, seguimos em frente. O aquecimento global era ainda desvalorizado por alguns, apesar das evidências irrefutáveis que a ciência nos dava. A nível social, assistíamos a fenómenos bizarros, com conflitos inúteis entre religiões, entre raças, entre ideologias. Em pleno século XXI, e com os meios tecnológicos disponíveis para a disseminação da informação, era difícil acreditar em muitas coisas que aconteciam...

E eis que, “de repente” (para os mais distraídos), somos surpreendidos por um agente microscópico invisível que faz o mundo parar, e ameaça dizimar um número enorme de seres humanos. Poucos de nós sobreviveram à “grande gripe” que surgiu no inverno de 1918, no pico da primeira grande guerra, pelo que esta é uma situação ímpar. Uma guerra silenciosa que parou o mundo, fechou fronteiras, afastou fisicamente pessoas que se amam e que estão longe, e que abana os sistemas sociais e económicos em todo o mundo. Pior que isso, esta guerra com o vírus SARS-CoV-2, está a matar um número de pessoas que não estávamos preparados para perder. São já vários milhares em todo o mundo, e talvez estejamos ainda longe de atingir o pico do problema - a pandemia da Covid-19 está a fazer o mundo parar. 

Naturalmente, Portugal está também “parado”, tomando as medidas certas para lidar com esta pandemia. Parece ficção. Muitos de nós estamos confinados às nossas casas. Sozinhos, ou com as nossas famílias, é nosso dever absoluto ficarmos em casa, para não por em risco as vidas dos mais frágeis, e para não sobrecarregarmos de forma trágica os sistemas de saúde, isto é, os heróis que cuidam de nós em condições muitas vezes pouco dignas. Em Itália, a resposta tardia e deficiente, causa actualmente uma tragédia sem precedentes, em que os os profissionais de saúde são obrigados a “escolher” quem tentam salvar.

Noutros países, em que os números ainda estão a crescer, lideranças irresponsáveis insistem em desconsiderar aquilo que é inegável: estamos perante um assunto sério, grave, preocupante, e que terá um impacto tremendo nas sociedades e na economia. O mundo vive uma emergência sanitária, para a qual nem os países mais equipados estão preparados. Capacitemo-nos disto.

No meio desta crise global, em que muitas actividades profissionais passaram a ser feitas em regime de teletrabalho, decidi vir para Portugal, para ficar perto dos meus familiares mais próximos, procurando assim evitar ficar retido no país onde trabalho sem possibilidade de viajar em caso de emergência. E essa hipotética emergência existia. Infelizmente, a minha mãe está doente. Gravemente doente. Eu não podia correr o risco de não a poder ver por estar longe... mas eis que, ironicamente, estou perto, mas tão pouco a posso ver com a frequência e liberdade que desejaria. Como viajei recentemente, tentei fazer “quarentena”, para evitar transmitir a doença, caso a tivesse contraído durante a viagem para o Porto. Fiquei em casa, como era meu dever. Estive em casa, mas com vontade de estar noutro lugar. Estou frustrado, triste, preocupado... Não comigo, pois acredito não pertencer ainda ao grupo de risco. Na verdade, confesso que já senti várias vezes vontade de ter a doença para “acabar com isto” de uma vez, deixando assim de ser um factor de risco para os outros. Mas o que eu não queria era ser um factor de risco para a minha mãe... a minha mãe, que tanto precisa de mim neste momento difícil e assustador da sua vida. A minha mãe que precisa do meu abraço, do meu carinho... e eu não lhos posso dar de forma livre... 

No meio desta pandemia e pandemónio global, que já por si era terrível, a minha mãe precisou de ir ao último lugar onde alguém na condição dela deveria ir: ao hospital. Na emergência, eu não hesitei! Levei-a onde sabia que lhe podiam valer. Consciente dos riscos, sabia que era lá onde ela precisava de ir. Foi um dilema fácil de resolver. 

Para grande tristeza familiar, a minha mãe precisou de ficar internada... no meio da sua doença terrível, que lhe traz a solidão de quem sabe o que tem, mas não sabe como ou quando irá terminar, este vírus acentuou a sua solidão ao impedir que a pudéssemos ver livremente. As visitas eram extremamente curtas e limitadas, mas também perigosas... perigosas para ela, pois não podíamos passar-lhe a doença, e perigosas para nós, pois não queríamos apanhar a doença nas idas ao hospital e contagiar quem está cá fora. Felizmente a minha mãe melhorou, e voltou a casa. Os cuidados irão manter-se, para a protegermos, mas pelo menos podemos estar próximos e ajudar.
Vivo assim um momento difícil da minha vida. Entre a “ficção” e o pesadelo familiar que vivemos. 

Publicado/editado: 22/04/2020