N(eur)ónios por Tiago Fleming Outeiro - A liberdade para escolher acreditar no que se quer: mas realidade há só uma

Eixos de Opinião de Dezembro de 2020

Tiago Fleming Outeiro - Director of Department of Experimental Neurodegeneration Center for Nanoscale Microscopy and Molecular Physiology of the Brain - University Medical Center Goettingen (Ver +)


Título: A liberdade para escolher acreditar no que se quer: mas realidade há só uma

O que aqui me proponho, se a tanto me ajudar o engenho e arte, inspirado pelas Tágides e com humilde arte, é explicar com uma fúria grande e sonorosa, não em verso, pois esse talento não tenho, mas em prosa, conhecimento que se espalhe e se cante no Universo.
 
Não preciso começar este texto relembrando que atravessamos a pandemia da COVID-19. Infelizmente, é impossível não termos reparado. As nossas vidas mudaram muito. Sofremos restrições, assistimos a incoerências que nos frustram e revoltam, perdemos empregos e fontes de rendimento. Agravam-se outras doenças que ficam negligenciadas, e surgem novos problemas e desafios. Mas perdemos e continuamos a perder muita gente, vítima da doença. Isto é um facto.
 
Por muito que se discutam e questionem, e bem, os resultados, nenhum país ou governo estava preparado para lidar com uma pandemia global, em pleno século XXI, em que a mobilidade e globalidade do mundo introduzem desafios que não soubemos antecipar. Nenhum país sai mais rico da pandemia. Isto é um facto.
 
Vivemos agora, em Dezembro de 2020, o tempo em que os resultados dos ensaios clínicos para possíveis vacinas começam a surgir. E ouvimos e lemos tanta barbaridade que me senti compelido a escrever. Porque informar e esclarecer é mais importante que nunca.
 
Assumo à partida que não sou especialista em virologia, ou em COVID-19. Sou cientista, numa área diferente, mas leio e compreendo a linguagem dos cientistas e como se processa o desenvolvimento de um medicamento (seja ele um tratamento, ou uma vacina). E por isso escrevo com base no conhecimento científico que tenho e no que leio de outros especialistas. Não do que leio nas mensagens propagadas por Whatsapp, Facebook, Instagram, Twitter, ou afins. Não são essas as fontes da informação científica.
 
Há por aí muitos que alimentam teorias da conspiração que já todos ouvimos e lemos: que o vírus foi criado na China; que a China beneficia com isto; que o Bill Gates e algumas famílias ricas estão por trás desta pandemia; que não é possível desenvolver uma vacina tão depressa; que isto é um negócio para as farmacêuticas; que isto é um plano para exterminar uma parte da população. Enfim, tanta barbaridade dói, ainda mais quando vem de pessoas que achamos serem inteligentes. E irrita, quando é propagada a uma velocidade alucinante, atravessando fronteiras e oceanos, só porque precisamos de ter uma explicação para o que não entendemos.
Para os Cristãos, a Bíblia explicava a criação, algo que não compreendemos ainda hoje, dizendo que Deus criou o homem, e do homem a mulher. Esta foi uma explicação simples para algo que não sabíamos e não sabemos ainda explicar totalmente. No entanto, sabemos hoje que há uma explicação científica para o início da vida, e para a evolução ao longo dos milhões de anos do nosso planeta. Até a religião aceita a explicação científica, e entende que o que está escrito na Bíblia foi a explicação simples, e possível, no tempo em que a Bíblia foi escrita. 
Porque precisamos então de explicações mirabolantes e despidas de lógica e fundamento para algo que a ciência nos está a ajudar a explicar? Penso que é porque vivemos um tempo em que tudo se propaga, e em que tantos “compram” as barbaridades que se propagam. Basta pensar que mais de 70 milhões de Americanos “compram” as fake-news do seu Presidente, e em que um país que se orgulha da sua democracia está em suspense com base em argumentos falsos, vazios de evidência, e que irão atrasar a que a nova e legitimada administração possa actuar...
 
O vírus SARS-CoV-2
Os vírus existem há milhões de anos, e temos convivido e continuaremos a conviver com eles enquanto existir vida. Não são seres vivos, não são seres pensantes, e não escolhem quem infectar. A verdade é que são elementos pré-celulares básicos e simples que se multiplicam por utilizarem a maquinaria da célula que infectam. Ao fazerem isso, podem destruir a célula e, eventualmente, por destruírem muitas células, causar doença. Se os vírus matarem os hospedeiros, acabam por não ter como se propagar. Matam depressa, mas não se espalham muito, como por exemplo o Ébola. Um vírus que não mata muito, e que causa apenas sintomas ligeiros, infecta muita gente e é mais difícil erradicar, como os vírus que causam a gripe comum ou constipações. Porque não circulam mensagens ou informação a dizer que o Ébola foi criado em laboratório por um “Bill Gates” da vida? 
 
Facto: nós não conseguimos, nem precisamos de conseguir eliminar todos os vírus que nos rodeiam. Muitos são úteis, como acontece com bactérias e outros organismos simples com que convivemos.
 
Há vários tipos de coronavírus que infectam a espécie humana. Uns causam sintomas leves, outros mais severos. O SARS-CoV-2, que causa a COVID-19, é um vírus que só descobrimos há uns meses.
Por muitas teorias da conspiração que se inventem sobre o que significa a sigla SARS-CoV-2, isto não as torna reais.
Terá sido o vírus criado em laboratório, na China? Terá sido o Bill Gates? O conhecimento científico que existe actualmente permite-nos fazer coisas muito complexas: permite-nos clonar animais (e até humanos), permite-nos ir ao espaço, à Lua, e provavelmente a Marte. Criar um vírus em laboratório é relativamente fácil, pelo que não seria impossível. Mas o conhecimento que temos também nos permite perceber, pelo estudo do material genético do vírus, se este foi sintetizado ou se surgiu naturalmente. Neste caso, não podemos garantir ainda que não tenha sido criado artificialmente. Mas sabemos que os vírus surgem, evoluem, e se modificam. Esta é a explicação mais normal, mais plausível, e não há evidência científica de que não tenha sido desta forma que este vírus tenha surgido, e que tenha infectado o homem e assim se propagou por todo o mundo.
 
Facto: O vírus mata. A mortalidade causada pelo SARS-CoV-2 varia muito em países diferentes, e não é muito alta. Na Bélgica, um país do primeiro mundo, evoluído, mata cerca de 130 pessoas em cada 100 mil. Um número muito alto! Na Alemanha, um país que faz fronteira com a Bélgica, o vírus mata cerca de 16 pessoas em cada 100 mil. Quase 10 vezes menos do que na Bélgica.
Nos EUA, mata 77 pessoas em 100 mil. Para se comparar, o vírus da gripe comum mata 18 pessoas em 100 mil, nos EUA. (4 vezes menos).
Se dizemos que o vírus não mata muita gente, então qual é o problema? Bom, a meu ver, esta pergunta está errada logo à partida. Como se quantifica a morte? Se matar outros então mata pouco. Se nos mata a nós ou a quem nos é querido, já mata muito. Então, por pouca gente que mate, mata demais.
O problema é que o vírus sobrecarrega muito todos os sistemas de saúde uma vez que, nas formas mais graves, exige um cuidado prolongado e intensivo, ocupando camas de hospital e profissionais de saúde que poderiam estar dedicados a tratar outras doenças.
 
Tratamento ou vacina?
Ambos! Precisamos de ambos, e há muita investigação a ser feita para que possamos ter tanto tratamentos como vacinas. Mas quase só ouvimos falar da vacina. Porquê? Porque, apesar de tudo, pode ser mais fácil desenvolver uma vacina. Por outro lado, uma vacina eficaz ajuda a reduzir e, quem sabe, erradicar, a doença.
Um tratamento é algo difícil de conseguir uma vez que a doença se manifesta de formas diferentes. Também não temos tratamentos muito eficazes para a gripe comum ou para as constipações. Tratamos alguns sintomas. E isto também já podemos fazer para o SARS-CoV-2. Mas não se fala tanto disso.
 
É possível desenvolver uma vacina em tão pouco tempo?
É! Sem dúvida! E não, não estamos a saltar etapas.
Há por aí muita gente a advogar que não é possível, que uma vacina demora 4-5 anos, que são os interesses das farmacêuticas... aqui temos de desconstruir várias ideias.
  1. Quando compramos um iPhone, um Mercedes, ou um BMW, ouvimos alguém queixar-se dos lucros brutais que essas empresas têm nos produtos que produzem? Ouvimos teorias da conspiração a dizer que o Bill Gates é o culpado pelos preços dos carros? Ou pela velocidade a que saem novos modelos, muitas vezes com defeitos de fabrico? Não...
  2. As farmacêuticas são empresas que procuram lucros. É para isso que existem. Não existem para fazer caridade. Digo isto sem ter conflitos de interesses, pois não sou dono de farmacêuticas. Tendo dito isto, concordo que se devem regular, de forma apertada, os lucros das farmacêuticas à custa da saúde e das vidas humanas. Mas desenvolver um medicamento custa muitos milhões de Euros. Não há milagres aqui. E os custos têm de ser cobertos.
Como é então possível desenvolver uma vacina tão depressa? A resposta é simples, para quem está atento e bem informado. 
  1. A ciência que se faz hoje acontece a uma velocidade incomparavelmente superior à que se fazia há 40, 20, ou mesmo há 10 anos. 
  2. Já temos muitas vacinas para outros vírus, pelo que adaptar o que já fazemos ao SARS-CoV-2 é relativamente simples. O conhecimento que obtivemos permitiu desenhar estratégias (muitas) que estão a ser testadas e que, felizmente para nós, sugerem que algumas vacinas possam ser eficazes.
Será que as vacinas vão ser seguras e sem efeitos secundários?
Não sabemos. Os dados que temos actualmente sugerem que são seguras, mas são dados ainda recentes, pelo que não sabemos quais os efeitos ao fim de 1, 2, 10, 20 anos. O que sabemos é que, vacinas semelhantes para outros vírus parecem ser seguras.
Efeitos secundários? Até uma aspirina tem efeitos secundários... então é normal que estas vacinas possam ter alguns efeitos secundários, mas não parecem ser graves. 
O que as agências reguladoras farão é avaliar toda a informação recolhidas durante os testes (ensaios clínicos) para decidirem se os benefícios superam os riscos, e se se justifica aprovar a vacina para ser usada na população, segundo indicações médicas precisas.
 
Por fim, a última pergunta que me parece importante responder: devemos tomar a vacina?
É uma pergunta complexa, pelo que volto a invocar-vos, oh Tágides minhas, para que possa terminar com a mesma humilde arte e fúria sonorosa, para que me ouça o Universo:
  1. Não posso assumir responsabilidade por aconselhar algo com implicações tão profundas na vida de ninguém.
  2. Cada caso é um caso, e por isso se definem grupos de risco – nesses, o risco de não vacinar irá ser maior do que o de vacinar, e por isso devem tomar.
  3. Devemos também considerar tomar a vacina se com isso pudermos proteger os mais vulneráveis – é uma responsabilidade social.
  4. Se houver vacinas aprovadas, e se me for dada a opção, eu confio nas autoridades responsáveis, e optarei por tomar a vacina.
Estes são alguns pontos que mereceram a minha reflexão. Que me despertam frustração e até revolta. 
Quem não conseguir interpretar toda a informação que circula, ao menos procure quem de facto sabe. E o conhecimento não está nas pessoas só porque são advogados, médicos, ou engenheiros. 
Todos temos a liberdade para acreditar e seguir as teorias da conspiração que quisermos. Mas realidade há só uma. Cuidado!
 
Publicado/editado: 23/12/2020