Neurónios por Tiago Fleming Outeiro - Preprints em tempo de Covid-19: moda, utilidade, ou confusão?

Eixos de Opinião de Maio de 2020

Tiago Fleming Outeiro - Director of Department of Experimental Neurodegeneration Center for Nanoscale Microscopy and Molecular Physiology of the Brain - University Medical Center Goettingen (Ver +)


Título: Preprints em tempo de Covid-19: moda, utilidade, ou confusão?

Vivemos numa época em que o acesso à informação é tão rápido e global que nos deparamos com problemas talvez para muitos inesperados. Vivemos na época das “fake news”, em que governantes de alguns países se elegem, desculpam, e enganam as populações com base em notícias falsas, que criam confusão.

Na ciência, o acesso à informação é extremamente valioso, e assistimos a uma indústria de milhões (de Euros mesmo), em que as editoras competem pela publicação dos trabalhos científicos, numa guerra de números que afecta as carreiras dos cientistas, principalmente os mais jovens, que ainda precisam provar a qualidade do trabalho que desenvolvem.

Há uns anos, para acelerar a publicação de estudos científicos e a disseminação da informação, que é essencial para que possamos avançar no conhecimento, algumas instituições criaram plataformas em que os cientistas podem, se assim o entenderem, depositar os seus trabalhos, que ficam assim livremente acessíveis a quem os quiser ler. Chama-se a esta versão do trabalho científico um “preprint”, uma vez que o trabalho fica disponível antes de ser publicado numa revista científica, onde passa por um processo de revisão por outros cientistas especialistas na área. Poderíamos discutir os méritos e defeitos deste processo de revisão, mas isto seria um tema para queimar muitos n(eur)ónios, pelo que o deixarei para outro momento. A questão é que estes preprints não são avaliados e escrutinados por outros cientistas, e por isso é mais provável que apresentem alguns defeitos, como acontece numa linha de montagem de uma fábrica que não tenha um departamento de controlo de qualidade a verificar o que é produzido. 

Numa altura como aquela que vivemos actualmente, com a pandemia da COVID-19, a pressão para a produção e disseminação de informação científica sobre a doença é muito grande. Há muitos grupos em todo o mundo a tentarem ser os primeiros a publicar as suas descobertas. Assim, a utilização das plataformas onde se depositam estes trabalhos em forma de preprint registaram um aumento de utilização tremendo desde o início da pandemia (na ordem dos 400%), inundando a comunidade científica com um número muito grande de trabalhos, muitos dos quais sem qualidade. A quantidade de informação com qualidade é já por si extremamente vasta, pelo que se misturarmos esta informação com outra de menor qualidade, torna-se muito difícil distinguir aquilo que é verdadeiro ou importante daquilo que é ainda preliminar, ou com menor qualidade. E isto é ainda mais difícil quando, não raras vezes, não somos especialistas em todas as técnicas e áreas científicas mencionadas num artigo científico. Este problema acentua-se ainda mais no que se refere a jovens cientistas, menos experientes, que se deparam com um número assustador de trabalhos que sabem que devem ler e conhecer mas que, humanamente, não conseguem acompanhar.

Um exemplo concreto está relacionado com o número de trabalhos sobre cloroquina ou hidroxicloroquina, moléculas com propriedades importantes noutras patologias, e que chegaram à ribalta da COVID-19 por serem mencionadas e propagandeadas, de forma abusiva e irresponsável, por líderes mundiais que melhor fariam muitas vezes se estivessem calados. O número de estudos sobre estas moléculas é muito grande, mesmo se a evidência científica real para os seus possíveis efeitos na COVID-19 sejam muito escassos. Isto ilustra bem o problema. Por um lado permite que muitos investigadores trabalhem nesta área, investindo e desperdiçando muitos milhões de Euros em trabalhos que, na minha opinião, vão ter pouca utilidade neste caso concreto. Por outro lado, inundam o mundo dos preprints com trabalhos de qualidade questionável, levando a fake-news que depois chegam à boca de governantes populistas e irresponsáveis.

Assim, esta moda dos preprints, que tem mérito e utilidade por permitir a disseminação rápida e global do conhecimento, tem de ser vista com cuidado, para evitar desperdício e confusão, que são contraproducentes numa área que requer rigor e responsabilidade, como qualquer área que toca com a saúde humana. 

Publicado/editado: 23/05/2020