Quadrantes por Francisco Fernandes - Damião de Góis: o mais notável humanista português condenado a “cárcere perpétuo” por relatar a realidade

Eixos de Opinião de Fevereiro de 2022

 

 

 

 

Francisco Fernandes - Arqueólogo e Professor de História


Título: Damião de Góis: o mais notável humanista português condenado a “cárcere perpétuo” por relatar a realidade

Na leccionação da disciplina de História do 8.º ano de escolaridade quando abordamos o Renascimento, sinto orgulho em falar de Damião de Góis.

Orgulho porque posso falar do português mais conhecido dos meios intelectuais humanistas renascentistas europeus, cinco séculos antes do Cristiano Ronaldo, e porque a quase totalidade dos alunos nunca ouviram alguma vez falar de Damião de Góis, tal é o esquecimento a que está votado esta enorme figura da nossa cultura.

Nascido há 522 anos, no dia 2 de fevereiro de 1502, Damião de Góis era filho de Alenquer de Góis e de D. Isabel Limi, esta última descendente de fidalgos flamengos.

Como membro de uma baixa nobreza, aos 9 anos, após a morte do pai, ingressou como moço de câmara na corte do rei D. Manuel I.

Aos 21 anos foi nomeado para a secretaria da feitoria portuguesa na cidade de Anvers (Antuérpia) na Flandres, aquele que era o mais importante entreposto comercial de especiarias do oriente na Europa, passando pouco depois a viajar diplomaticamente por toda a Europa, iniciando assim um período de contactos com os mais proeminentes pensadores humanistas, como Erasmo de Roterdão, Lutero e Melanchton.

Depois de um regresso frustrado a Lisboa em 1533, voltou a viajar pela Europa e frequentou os maiores centros humanistas italianos em Veneza e Roma, tendo depois concluído estudos na universidade de Pádua. Daí seguiu novamente para a Flandres, mais concretamente para Lovaina, onde casou em 1539 com Joana van Hargen.

Fruto destas experiências, Damião de Góis afirmou-se como um dos maiores vultos do humanismo renascentista, tornando-se músico, compositor,  colecionador de arte e mecenas, para além de historiador e escritor.

Regressado a Lisboa em 1545, já no reinado de D. João III, Damião de Góis viveu um período de prosperidade e riqueza, tendo sido nomeado guarda-mor da Torre do Tombo em 1548.

Contudo, as suas obras humanistas e historiográficas, com destaque para a crónica de D. Manuel, encomenda do cardeal-regente D. Henrique, publicada em 1566, começaram a despertar a inveja e o despeito de muitos elementos do clero e da nobreza, enfrentando muitas acusações de heresia, enfrentado 2 processos no tribunal do Santo Ofício.

Se o primeiro não teve andamento, o segundo veio a terminar com a própria vida do humanista.

Não habituados a uma crónica que relatava e apresentava a realidade sob o fundo da verdade, e não apenas como uma obra que exaltasse os feitos dos grandes do reino, os seus inimigos não lhe perdoaram esta audácia, a começar pelo próprio cardeal D. Henrique.

A sua descrição real e verdadeira do horror que foi o massacre dos judeus em Lisboa em 1506, não lhe foi perdoada, ao qual se juntaram os testemunhos de dois acusadores, um seu vizinho, João Carvalho, que o acusou de verter salmouras pelas frinchas do soalho para cima do crucifixo que este tinha em sua casa, e o seu próprio genro, este por motivos de partilhas de bens.

Preso em 1571 pela Inquisição, a 16 de outubro de 1572 foi condenado a “cárcere perpétuo”, depois de ter confessado e se ter declarado arrependido dos crimes de heresia e apostasia perante o tribunal do Santo Ofício.

Apesar de ser condenado a cumprir pena no mosteiro da Batalha, foi-lhe permitido permanecer em prisão domiciliária onde, a 30 de janeiro de 1574, foi encontrado morto, caído sobre a lareira, com fortes indícios de ter sido mesmo assassinado.

Publicado/editado: 21/02/2022