Intervalos por Fernando Pestana da Costa

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião abril de 2015



 


No ano em que a SPM faz 75 anos, este será um espaço onde a matemática vai ser o tema central todos os dias "uns" de cada mês. Intervalos será o título desta rubrica...             

   

Fernando Pestana da Costa -  Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática              



Intervalos por Fernando Pestana da Costa (Presidente da SPM) - Dia 1

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião abril de 2015

 

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Título: 
Matemática em todo o lado


Uma das mais visíveis obsessões atuais é a preocupação com aplicabilidade e impacto. A propósito do que estudamos, do que ensinamos, ou do que investigamos, está sempre presente a eterna pergunta “para que é que isso serve?”, seja feita assim, ingénua e honestamente, por alunos, colegas e amigos, seja feita de modo mais sofisticado (e com intenções bem menos inocentes) pelas instituições que financiam a investigação.

A importância de um determinado conhecimento tende a ser medida pelo impacto que tem noutras facetas da vida humana. Isto, em si mesmo, nada teria de objetável se a felicidade humana ou o enriquecimento intelectual ou estético fosse uma das facetas consideradas válidas. Infelizmente uma resposta nesta linha arriscar-se-ia a não ser aceite por quem pergunta e ainda menos se esse alguém for quem paga a produção do conhecimento em causa. 

Somos, assim, quase forçados a dar respostas que satisfaçam quem pergunta, mesmo que não sejam as verdadeiras razões do nosso interesse. Surgem, deste modo, muitas das respostas escolares e académicas usuais às perguntas do tipo “para que é que serve?”: parece que a generalidade das pessoas fica mais reconfortada sabendo que certas coisas que estudamos em, por exemplo, Trigonometria ou em Dinâmica elementares, podem ser usadas “para a medição da altura de árvores (ou de pirâmides no Egipto)” ou “para o conhecimento da profundidade de um poço”, ou seja, portanto, para responder a questões que nunca as preocuparam antes, que muito provavelmente não as preocuparão depois, e que, na grande maioria das vezes, foram absolutamente irrelevantes para o desenvolvimento do assunto em estudo.

Claro que a ilustração de que a Matemática que aprendemos na escola ou que investigamos tem aplicações atuais úteis e interessantes é algo importante e que devemos esforçar-nos por transmitir, o mais realisticamente possível, à sociedade de que fazemos parte (seja aos alunos, aos colegas, ou ao público em geral), mas a obsessão por aplicações práticas imediatas pode ser ilusória e contraproducente. 

Um caso que uma colega minha me ensinou recentemente é, a este respeito, muito interessante: A invenção e os primeiros estudos sobre cadeias de Markov (um importantíssimo tipo de Processo Estocástico que acabou por ter inúmeras aplicações na Matemática e em variadíssimas Ciências – exatas, naturais, e sociais) não foram motivados por qualquer aplicação científica ou técnica imediata, mas por razões matemáticas puramente teóricas e por uma polémica matemático-filosófico-religiosa entre os matemáticos russos Andrei Markov e Pavel Nekrasov sobre a relação do livre arbítrio com a lei dos grandes números. É também interessante constatar que uma das primeiras aplicações das cadeias de Markov, pelo próprio Markov, surgiu em 1913 e teve por objeto a investigação estatística do poema Eugene Onegin, de Alexander Pushkin. Talvez não seja muito arriscado conjeturar que Markov teria tido bastante dificuldade em justificar junto das entidades financiadoras atuais porque é que planeava passar semanas ou meses a contar letras e grupos de letras num poema e a calcular probabilidades relacionadas com tais coisas, em vez de se dedicar a estudar um assunto mais “útil”! Este caso, que é apenas um entre muitos outros da mesma natureza, ilustra bem quão arbitrária pode ser a indicação da aplicabilidade ou do impacto da Matemática que fazemos.

Um outro exemplo, talvez mais relevante para a Matemática que ensinamos, é ainda mais surpreendente: creio que poucos de nós se lembrariam de, à pergunta “para que é que isto serve?” feita por um dos nossos alunos, respondermos: “para, no futuro, seres um melhor humorista”. Mas o curioso é que, em alguns casos, tal poderia não ser desadequado, como fica claro no giríssimo livro de Simon Singh “The Simpsons and their Mathematical Secrets” (Bloomsbury, 2013), o qual ilustra não apenas a interessante Matemática que surge em muitos episódios da série Simpsons e da sua série-irmã Futurama, mas também nos informa do motivo de tal ocorrência: é que na equipa de escritores dos episódios destas séries existem escritores/humoristas profissionais que tiveram formação em Matemática, Física, ou Ciências da Computação; e formação bastante avançada: dois deles a nível de doutoramento! Este gosto pela, e conhecimento da, Matemática por parte dos humoristas reflete-se, em muitos episódios dos Simpsons, nas piadas com alusões e referências a resultados Matemáticos, por vezes corretos (usualmente veiculados pela Lisa), outras vezes caricaturalmente errados (como é típico dos que são produzidos pelo Bart, ou pelo Homer), e os diversos níveis de leitura humorística que são deste modo originados constituem uma das características que tornam esta série de animação, para além de divertida, tão rica e potencialmente educativa. Efetivamente, a utilização desta série para a motivação de estudantes para a Matemática tem sido feita nos Estados Unidos (http://mathsci2.appstate.edu/~sjg/simpsonsmath/) e pode ser que se a utilizarmos também entre nós e se à pergunta “para que é que isto serve?” começarmos a responder com um enigmático “para seres o próximo ‘Gato Fedorento’!”, fiquemos surpreendidos com o resultado: pode até ser que venhamos a ter razão…

É que, afinal, a Matemática está mesmo em todo o lado!

Publicado/editado: 01/04/2015