O entrevistado do mês de junho de 2020 é Tiago Mestre, médico e investigador da Universidade de Ottawa. De mente aberta a um ritmo pausado e assertivo responde com um raciocínio perfeccionista. Uma entrevista com circulação pela infância, por Lisboa, pela matemática, a Universidade de Ottawa, a medicina, a investigação em neurociência e, claro o futuro. Estas serão as vitaminas de uma conversa sem grandes acelerações mas trata-se de um excelente exercício cuja leitura não tem contra-indicações e vai ficar na memória.
Como foi a tua infância?
Eu nasci e cresci em Lisboa. Sou um alfacinha que ama a cidade de Lisboa, mesmo vivendo no Canadá. Apesar de ter ligações a outras partes do país nomeadamente ao Algarve (Alcoutim) e à Serra da Estrela (Covilhã) por via dos meus pais, Lisboa foi onde cresci. Na condição de estrangeirado, todas as oportunidades são boas para regressar a esta Lisboa mesmo que por um par de dias. Estar com a família, passear pelas grandes avenidas, pelas ruas esconsas dos bairros tradicionais, passar pela zona ribeirinha e observar o que permanece e a mudança que se instalou são pequenos prazeres deliciosos que tenho o privilégio de disfrutar várias vezes ao ano. Regressando à pergunta, foi uma infância normal, com brincadeiras, aventuras, boas memórias. Em linguagem matemática, em plena classe modal numa distribuição normal!
Como recordas as tuas escolas até ao final do secundário?
E professores… tenho ótimas recordações das escolas que frequentei até entrar na Universidade. Os meus pais tomaram a decisão pelo ensino privado e cooperativo: frequentei o Colégio S. João de Brito no Lumiar, desde a primeira classe. Foi uma escola que me transmitiu valores fundamentais de ser pessoa e de estar na vida: a escola tem no centro da sua pedagogia Educar para Servir. Guardo também grandes amizades desses tempos e que permanecem até aos dias de hoje. Para além da parte académica, joguei andebol por muitos anos, recordo o espírito de camaradagem, os muitos jogos em outras escolas pela região de Lisboa que me permitiram conhecer outras realidades. Costumávamos participar em torneios internacionais em Espanha. Eram viagens-aventura com 12-14 anos e sempre um desafio especial do ponto de vista desportivo. Na parte escolar, gostava de muitas disciplinas como matemática, biologia, história ou artes/trabalhos oficinais. Entre os meus professores preferidos, tenho a memória da professora de Matemática no ensino secundário; um exemplo, de sabedoria, inteligência e exigência, que me chamava constantemente ao quadro para resolver problemas em frente da turma. A professoras de Biologia do ciclo e do secundário também me marcaram bastante. Por último, a professora de Inglês do ensino secundário que me ajudou a crescer no Inglês, mas também como pessoa no período de adolescência. Sempre me deu confiança a minha capacidade de expressão em Inglês no meu percurso escolar e profissional fora de Portugal.
Sempre foste bom aluno a matemática?
Sempre gostei de Matemática e aprendia com alguma facilidade, mas reconheço nunca ter ido muito longe nas Olimpíadas da Matemática! A decisão de enveredar pela Medicina como carreira académica e profissional, levou-me a não cultivar este interesse. Decidi enveredar por uma carreira em Medicina pelo fascínio que o cérebro e o seu funcionamento despertou em mim. Costumo dizer que entrei em Medicina para ser neurologista. Na minha memória, guardo o livro “Erro de Descartes” como um momento de revelação então com os meus 14 anos. É interessante pensar que foi a ciência, o pensamento dedutivo espelhado neste livro que me fez pensar em Medicina. O gosto pela descoberta de ligações lógicas entre vários elementos (e fugir à aprendizagem baseada exclusivamente na memória) acompanhou-me em Medicina. O exame clínico em Neurologia é um exemplo: requer a aprendizagem da linguagem do Sistema Nervoso para, duma forma lógico-dedutiva, possamos formular um diagnóstico topográfico e responder à questão: onde está a lesão?
Queres falar-nos um pouco do teu percurso académico até chegares ao Canadá?
Começo talvez pelo fim, a chegada ao Canadá. Após completar o meu treino clínico em Neurologia, decidi alargar a minha experiência na área da Neurologia que tinha cativado mais o meu interesse: as Doenças de Movimento que inclui a Doença de Parkinson. Entrei em Medicina na Faculdade de Medicina de Lisboa onde me acabei por formar, tendo depois feito o quinto ano e o internato geral entre o Hospital Curry Cabral em Lisboa e o Hospital de Santa Maria com experiência riquíssimas na ilha Terceira e na ilha de S. Vicente em Cabo Verde. Acabei por entrar para a especialidade de Neurologia no Hospital de Santa Maria em Lisboa.
És médico, num dos principais hospitais no Canada, em Ottawa. Como surgiu e como está a ser a experiência?
No final do meu fellowship em Doenças de Movimento no centro de doenças do Movimento em Toronto liderado pelo Professor Anthony Lang. Nos meus anos de formação médica e neurológica, ganhei a consciência que queria ser um neurologista em que o contacto com o doente neurológico, o trabalho científico e o treino dos mais jovens fariam parte do meu quotidiano profissional. Com essa ideia de vida profissional, tomei a decisão de ficar e experienciar o ambiente académico norte-americano, em particular, no Canadá. Estou em Ottawa há cinco anos. Os meus dias são ricos e desafiantes no contacto com os doentes, atividade de cientista, e o treino de internos. Ottawa é uma típica capital administrativa com uma ótima qualidade de vida pela baixa densidade populacional, em que as viagens entre casa e hospital são breves e bastante aprazíveis, tanto de carro com de bicicleta. Em especial no Verão, vou para o hospital de bicicleta. Ottawa está plenamente dotada de serviços socioculturais, com espaços verdes para o lazer, museus, salas de concertos. É ideal para quem tem uma família com filhos pequenos.
És investigador. O que investigas neste momento e onde?
A ciência faz parte do meu quotidiano. Desenvolvo investigação clínica aplicada à doença de Parkinson bem como outras doenças do movimento com um foco particular no desenvolvimento de novas terapêuticas. Nos últimos cinco anos, criei um programa multifacetado centrado no desenvolvimento de tratamentos para sintomas na doença de Parkinson órfãos de indicações terapêuticas, inovação nos cuidados de saúde em Doença de Parkinson com modelos pragmáticos e de mais fácil implementação que procuram otimizar o uso de recursos de saúde existentes e promover a educação e “empowerment” das pessoas que vivem com a doença de Parkinson. Tenho também me dedicado ao estudo do uso de placebo em ensaios clínicos num contexto mais largo de expectativa de benefício como determinante da eficácia terapêutica em ensaios clínicos e na prática médica. Completei a minha tese de Doutoramento neste último tema.
A matemática é uma ciência invisível. A ciência que investigas acaba por ter essa matemática, que não se vê?
Sem dúvida. O pensamento científico, em particular, a lógica é condição substancial em qualquer projeto de ciência. A investigação clínica implica a familiarização com métodos estatísticos, fundamentais para determinar a precisão dos resultados de um estudo clínico e melhor compreender o seu significado. Reconhecendo a importância de métodos estatística aplicados, completei um Mestrado em Clínica Epidemiológica no Canadá. Atualmente, privilegio colaborações com bio estatistas no meu trabalho de investigação que acabam por trazer robustez ao trabalho científico aplicado que faço.
Nesta altura, com esta pandemia, como estás a viver este problema?
Tenho vivido a pandemia do COVID-19 mais como médico, dado que a ciência tem estado quase parada dado a regra de hoje ser a impossibilidade de interagir com doentes no âmbito de projetos de investigação. De qualquer forma, neste novo normal tenho tido mais tempo para desenvolver novos projetos, escrever artigos científicos e apresentar os resultados em congressos virtuais. Regressando ao impacto da pandemia do COVID-19 como médico, encaro a presente situação como uma oportunidade. Por exemplo, creio que tem trazido os valores fundamentais do ser Médico para o centro da nossa atividade duma forma mais intensa e clara: o espírito de serviço ao outro com doença que supera as circunstâncias e perceção de riscos para o próprio médico. Uma outra perspetiva é que o cenário atual fez-nos descobrir novas formas de praticar medicina com o uso de tecnologia que permite a virtualização do contacto entre doentes e médico. Em ambiente de consulta, temos utilizado sistemas de videoconferência para permitir a continuidade de cuidados de saúde aos nossos doentes e tem sido bem recebido por uma larga porção de doentes. Creio que estas mudanças vieram para ficar mesmo num cenário pós-COViD com vantagens claras no acesso a cuidados médicos para aqueles doentes que pela distância geográfica ou dificuldades de mobilidade. Não sabemos como esta virtualização pode alterar a relação médico-doente.
O matemático Alfred Rényi disse um dia que “quando estou infeliz trabalho em matemática para ficar feliz. Quando estou feliz, trabalho em matemática para me manter feliz”. O que te faz feliz?
O que me faz feliz é a procura da felicidade em pequenos passos reveladores dessa mesma promessa: ser feliz. Tenho o privilégio de fazer o que gosto e nesse sentido sou feliz. Atendendo que o trabalho de qualquer um representa uma grande fatia da vida quotidiano, sinto-me muito afortunado. A vida é feita de equilíbrios e de outras fontes de felicidade. Passar tempo com a família (temos dois filhos pequenos) é uma delas. Na ínfima porção de tempo que me resta guardo alguns prazeres e passatempos: jardinagem num pequeno quintal em casa (passatempo recente), nadar, cozinhar, fotografia, viajar. Conto os dias para que possa viajar pelo Mundo no pós-COVID com a minha mulher e com os meus dois filhos.
Entrevista de Carlos Marinho