Entrevista a Tiago Fleming Outeiro - Investigador Português da Universidade de Gottingen, da Alemanha

Clube Entrevista de Março de 2019

Tiago Fleming Outeiro, investigador da Universidade de Gottingen, na Alemanha é o entrevistado do clube spm de março de 2019. Uma conversa com (bio)quimica, vai desde a infância até às doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson ou Huntington. Uma entrevista cerebral, desprovida de patologias, com uma boa genética sem diagnóstico reservado e que vai ficar na memória...

Nasceste em Matosinhos. A tua infância daria uma boa investigação?
Na verdade nasci no Porto, mas cresci e vivi sempre em Matosinhos até ter saído em 1998. Não sei se a minha infância daria uma boa investigação... acho que fui uma criança normal, e não considero ter estórias muito espectaculares para contar. Fiz as minhas traquinices, estudei, brinquei, joguei voleibol... talvez haja alguns detalhes interessantes, mas não creio que a biografia da minha infância desse uma investigação muito interessante. 

O que recordas das tuas escolas até ao final secundário?
Recordo todas as escolas onde andei. O colégio Ramalhete, na Foz, foi um local onde penso ter sido bem estimulado e onde tive contacto com outras crianças. Depois fui para a escola da Rua do Godinho, e penso que aí recebi uma formação base muito sólida, por duas Professoras que estava no pico da sua experiência, e que nos estimularam e ensinaram a base para tudo o resto que vim a aprender. Sem dúvida que lhes devo muito. Seguidamente fui para o ciclo preparatório, a actual Escola EB 2/3 de Matosinhos. Foi uma grande mudança, para uma escola grande, com bons professores, e que guardo com boa memória. Finalmente fui para a Escola Secundária Augusto Gomes, do 7º ao 12º ano, e recebi toda a preparação para a Faculdade. Gostei muito da escola Augusto Gomes, e fiz bons amigos. Recordo, de todas as escolas, as brincadeiras nos intervalos, o jogar ao berlinde, jogar futebol, correr à volta da escola, jogar voleibol, ou ao “mata”. Bons tempos, em que as crianças brincavam ao ar livre, sem estarem agarrados aos telemóveis, tablets, ou consolas de jogos... e faz tanta falta brincar como brincávamos...

E professores. O que recordas?
Ainda recentemente tive a oportunidade de estar com a Prof. Isabel Vilar Ribeiro, uma das minhas professoras da escola primária, e recordámos velhos tempos. A outra Professora, Leonilde Rodrigues, era também óptima Professora, mas talvez mais disciplinadora. Felizmente não apanhei muitas reguadas, mas sou adepto de que uma reguada na mão, na altura certa, não faz mal a ninguém. Nos dias que correm, acho que bem falta fazem... 
Dos Professores do ciclo e da secundária também me lembro bem. Foram muito importantes para me darem a base do Português, da Matemática, das Ciências, da Química, do Inglês. Eram todos diferentes, naturalmente. Uns com mais experiência do que outros, mas com todos aprendi muito. Tive sorte de ter uma óptima Professora de Inglês que me deu uma boa base para poder depois aventurar-me e ir para o estrangeiro estudar, nunca tendo sentido dificuldade com a língua. Na matemática, tive o Prof. Ventura. Curiosamente tinha doença de Parkinson, uma das doenças que estudo actualmente.
Confesso que não apreciava as aulas de trabalhos oficinais, principalmente “têxteis”, que não era definitivamente o meu forte... 

A matemática era uma das tuas disciplinas preferidas?
Nunca tive muitas dificuldades a matemática, e gostava da disciplina. No entanto, houve duas alturas em que me custou: no 8º ano, tive um “suficiente” num teste, depois de um “muito bom”. Foi difícil “engolir”, pois estava habituado a boas notas. Mas com trabalho, e temas mais interessantes, depois voltei a melhorar. Mais tarde, no 1º ano da Faculdade, tive um choque maior. Apesar de ter sido bem preparado na secundária, a minha escola tinha adoptado os novos programas, e isso não estava coordenado com a Matemática que era dada na faculdade. Ou seja, os meus colegas de outras escolas tinham dado matérias que eram novas para mim, e aí confesso que custou. Não desisti, porque não sou de desistir, e acabei a cadeira com 14, pois não podia deixar que a matemática me vencesse! Mas confesso que vejo a matemática como uma disciplina muito importante, não só para nos ajudar a desenvolver o pensamento, mas porque a podemos aplicar quase em tudo o que fazemos. Gostava de saber mais do que sei actualmente, mas o tempo não dá para tudo...

O que te deu a matemática para o trabalho que fazes na atualidade?
A matemática, como disse acima, está em tudo à nossa volta. Podemos não compreender, mas está lá. Assim, quanto melhor formos capazes de a compreender, e a sua utilidade, melhores podemos ser no que fazemos. No que faço actualmente, a matemática é muito importante, sobretudo na estatística que temos de usar para interpretar os resultados que obtemos.

Porque escolheste esta área?
Sabia que não queria ser médico, pois não creio que fosse sair-me bem a lidar com certas patologias. Mas sempre senti uma grande curiosidade por aprender, por descobrir, por compreender o mundo que nos rodeia e, em particular na biologia. Na secundária gostava de Química e Biologia, por isso a Bioquímica pareceu uma boa opção. E acho que foi mesmo, pois encontrei muitas áreas de que gosto.

És investigador da Universidade de Gotiingen, na Alemanha. Qual é o foco da tua investigação?
Eu fiz a minha formação avançada nos EUA e, em 2007, decidi voltar a Portugal, onde iniciei o meu grupo de investigação. Estava muito satisfeito com o trabalho e as condições, mas tive uma oferta difícil de recusar, da Universidade de Gotiingen. Era uma posição de Prof. Catedrático, e director do departamento. Depois de pensar, e de perceber que em Portugal era considerado “novo” demais (note-se, não me disseram que não tinha experiência suficiente, mas sim que era “novo” demais para uma posição de topo como aquela que a Alemanha me estava a oferecer...), decidi aceitar o desafio. 
A minha investigação tem-se centrado no estudo daquilo que está na origem de doenças neurodegenerativas como Alzheimer, Parkinson, ou Huntington. São todas doenças terríveis, em que determinados tipos de neurónios no cérebro deixam de funcionar correctamente e, eventualmente, acabam por morrer, dando origem aos sintomas característicos das doenças. O problema é que, apesar de estas doenças terem sido descritas há mais de 100 anos (mais de 200 no caso da doença de Parkinson), ainda compreendemos pouco sobre aquilo que as despoleta. Sabemos que nos cérebros dos doentes se acumulam proteínas “desenroladas”, em aglomerados que pensamos serem tóxicos, E a minha investigação tem-se centrado no estudo deste processo de “desenrolamento” e aglomeração das proteínas, para tentarmos identificar novas formas de intervenção terapêutica, que tanta falta fazem para os doentes e as suas famílias.

És diretor do departamento experimental de neuro degeneração? O que fazem em concreto?
Sim, sou director do departamento. O que fazemos é investigação laboratorial, utilizando organismos modelo, como as moscas da fruta, ratinhos, ou modelos celulares simples, em que tentamos reproduzir aquilo que sabemos que se passa no cérebro humano. O meu trabalho, actualmente, consiste em orientar projectos de mestrado, doutoramento, e pós-doutoramento, para formar futuras gerações de investigadores. Para além disto, tenho de escrever projectos de investigação, escrever artigos científicos a descrever os nossos resultados, apresentar o que fazemos em congressos científicos, e planear colaborações com outros colegas. Depois, há todas as outras actividades menos científicas, mais de gestão, que tenho de fazer no departamento, e que dão umas belas “dores de cabeça”. 

Queres apresentar-nos a tua equipa?
Presentemente, a minha equipa é constituída por 18 pessoas. Entre elas, tenho estudantes de mestrado e doutoramento, tenho investigadores a fazerem pós-doutoramentos, técnicos de investigação. É um grupo muito internacional, com pessoas de Portugal, Brasil, Espanha, Grécia, Alemanha, China, Índia, Itália, Iemen, Rússia, entre outras nacionalidades. Cria-se um ambiente muito interessante, em que nos apercebemos das diferenças culturais, mas também do que nos aproxima enquanto seres humanos.

O que sabemos atualmente das doenças de Parkinson e Alzheimer?
Bom, esta pergunta daria grandes teses de doutoramento. De forma sucinta, sabemos de que forma as doenças se manifestam clinicamente, e sabemos que se acumulam aglomerados proteicos anormais no cérebro. Conhecemos alguns dos circuitos afectados, conhecemos alguns factores de risco, sabemos que há morte neuronal à medida que as doenças progridem. Conhecemos alguns genes associados a formas familiares/genéticas destas doenças, mas sabemos que, na sua maioria, são doenças esporádicas.

E o que não sabemos?
Se a pergunta anterior dava teses de doutoramento, esta daria ainda mais. Essencialmente, não sabemos porque algumas pessoas as desenvolvem e outras não... não sabemos o que está na origem das doenças... e a sensação que temos é que o conhecimento sobre estas doenças é um buraco que, à medida que é escavado, se vai tornando mais fundo, mas sem que o consigamos ver ainda. Temos muito a aprender ainda. 

Existem ações que o ser humano pode ter para evitar estas doenças?
Existem comportamentos que sabemos podem ajudar a reduzir o risco, mas não existem acções que saibamos que possam evitar estas doenças. O nosso cérebro é uma máquina fantástica, e temos de cuidar bem dela. Exercício físico, alimentação cuidada, e estímulos diferentes (como viajar, estar em grupo, ouvir música, dançar, ler, entre muitos outros), são comportamentos que podemos ter e que nos podem ajudar a reduzir o risco. Mas não o eliminam.

Como surgiu este convite de dirigires este projeto?
Surgiu de forma inesperada... houve uma vaga em Göttingen, e decidiram que queriam alguém com o meu perfil, com a minha experiência. Convidaram-me, e o resto é história. 

Alexander Fleming descobriu a penicilina. Tu és Fleming. A origem desse nome vem…
O nome Fleming é algo de que nos orgulhamos muito na família. Na verdade é algo já bem antigo, de um parente que veio da Escócia, e que nunca conheci. Foi sendo passado na família, por ser motivo de orgulho, mas pelo que sabemos não deve ter ligação com o Alexander Fleming, da penicilina. Penso que é apenas uma coincidência. Estou certo de que não terei o impacto que o Alexander Fleming teve na medicina, mas não é isso que me move. O que me move é mesmo uma vontade grande de conhecer mais, de procurar respostas, de nunca deixar de aprender. 

O que fazes nos tempos livres?
Gosto muito de fazer desporto: correr, andar de bicicleta, jogar voleibol. Mas adoro praia, sol, calor, gosto de viajar e conhecer países novos, gosto de estar com a família e amigos, de cinema, de ler... gosto de seguir o nosso futebol, sendo um Portista ferrenho, e um Leixonense por ser o clube da minha cidade, e onde joguei voleibol. No fundo, tento ter uma vida normal, dentro daquilo que o pouco tempo livre me permite. Os cientistas não são todos como o estereótipo. Pelo menos tento não ser. 

Estar longe da família é provavelmente o mais difícil. Como fazes para estar em contato com eles?
Sim, desde que saí de Portugal que isso é das coisas que mais custa. Com o tempo vamo-nos habituando e, nesta fase da vida, as idas a Portugal podem ser mais frequentes. Com as novas tecnologias, acaba também ser mais fácil estar em contacto quase diário. Este é o lado mais positivo dos telemóveis, quanto a mim. 

O matemático Alfred Rényi disse um dia que “quando estou infeliz trabalho em matemática para ficar feliz. Quando estou feliz, trabalho em matemática para me manter feliz”.  O que te faz feliz? 
Concordo com essa afirmação. O trabalho é algo essencial na minha vida. Ajuda nos bons momentos, e em momentos menos bons. Mas gosto de pensar que tenho outras coisas na vida que me fazem sentir feliz. Estar com aqueles de quem gosto, viajar, e estar numa bela praia a apanhar sol e a ler um bom livro. 

Publicado/editado: 01/03/2019