Intervalos por Fernando Pestana da Costa

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião maio de 2015



 


No ano em que a SPM faz 75 anos, este será um espaço onde a matemática vai ser o tema central todos os dias "uns" de cada mês. Intervalos será o título desta rubrica...              

   

Fernando Pestana da Costa -  Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática               



Intervalos por Fernando Pestana da Costa (Presidente da SPM) - Dia 1

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião maio de 2015

 

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Título:  
“Checks and balances”

As Democracias contemporâneas têm como uma das suas principais características o facto das suas ordens constitucionais serem construídas em torno da separação e do equilíbrio de poderes, residindo os poderes executivo, legislativo e judicial em órgãos diferentes e estabelecendo-se uma teia de interdependências entre esses órgãos que permite um certo controlo mútuo: aquilo que os anglo-saxónicos designam por “checks and balances”. 

O conceito foi deliberadamente introduzido pelos revolucionários americanos na constituição dos Estados Unidos em 1787 e utilizado de novo, dois anos mais tarde, pelos revolucionários franceses na sua lei constitucional de 1789. Em ambos os casos, a separação, a limitação, e o equilíbrio de poderes eram características julgadas sine qua non para a liberdade dos cidadãos e para o bom funcionamento da República. 

Claro que estes princípios não resolvem todos os problemas e mesmo esquemas organizacionais aparentemente bem sucedidos durante algum (ou, até mesmo, muito) tempo podem começar a revelar-se inadequados perante novos desafios. Um exemplo disto mesmo li recentemente no perspicaz artigo de Francis Fukuyama “America in decay: the sources of political dysfunction” (Foreign Affairs, vol. 93, No. 5, 2014, pp. 5—26) acerca do atual estado disfuncional dos “checks and balances” norte americanos.

O mesmo tipo de equilíbrio precário de “checks and balances” ocorre em muitas outras atividades humanas não diretamente políticas. Uma situação com relações diretas com a Matemática é o sistema de arbitragem (“refereeing”) de publicações científicas: ao submeter um artigo científico para publicação numa revista da especialidade, um investigador sabe que ele será enviado para um, dois, ou mais, investigadores anónimos que o lerão e poderão recusar-lhe a publicação, ou fazer sugestões de melhoria, por vezes apenas pontuais ou de estilo, não raras vezes descobrindo incorreções, erros, ou falhas metodológicas no artigo original e até, por vezes, sugerindo maneiras de as corrigir. 

Este processo de “refereeing”, tal como os “checks and balances” políticos, é uma prática que, estando longe de ser perfeita e funcionando por vezes de modo até bastante ineficiente, continua a ser o mais eficaz mecanismo de controlo de qualidade científica atualmente à nossa disposição. Não deixando de existir polémicas acerca dos seus aspetos mais problemáticos (de que um exemplo são as interessantes contribuições “A world without referees” e “In praise of the referee”, publicadas no boletim da International Society for Bayesian Analysis, em março de 2012 e 2013, respectivamente), o processo de arbitragem é aceite como vantajoso pela generalidade dos investigadores. São até identificáveis na versão científica dos “checks and balances” algumas virtualidades menos óbvias a um observador mais desprevenido: seja porque o processo em si permite uma maior equalização das oportunidades de publicação em boas revistas por parte de investigadores desconhecidos e sem contactos prévios com os líderes da área científica, cujo trabalho, se não fosse publicado numa revista de prestígio, com o aval prévio de “referees”, se arriscaria a passar desapercebido; seja pelo facto de que o investigador, sabendo que o seu trabalho será lido e criticado por outros, que podem recusar-lhe a publicação, se esforçará por ser o mais claro e cuidadoso possível a fim de minimizar as hipóteses de rejeição (que são bastante elevadas nas melhores revistas).

Termino este “Intervalo” com uma outra situação particularmente importante de “checks and balances” que, estranhamente, continuam a gerar polémicas periódicas: a avaliação externa dos estudantes no sistema de ensino português, nomeadamente os exames e provas de fim de ciclo. Tal como todos os sistemas de “checks and balances” a avaliação externa, como qualquer avaliação, está longe de ser perfeita e não permite avaliar tudo o que é ensinado e aprendido. Exatamente por isso deve ser balanceada com a avaliação interna, produto do trabalho do estudante ao longo do ano. Mas a avaliação externa final é um “check” fundamental com funções insubstituíveis: de aferição independente dos interessados (estudante e seu professor) da qualidade do trabalho desenvolvido; de equalização das oportunidades de sucesso independentemente de simpatias ou contactos sociais; e de identificação de deficiências do sistema de ensino, passo indispensável à sua posterior correção (um estudo interessante neste âmbito é o Relatório Nacional 2010-2014 sobre as provas finais dos 2º e 3º ciclos do ensino básico, publicado pelo IAVE na semana passada). 

Para além destas e de outras funções das avaliações externas, há mais uma que é óbvia e que é semelhante ao que se passa com o “refereeing”: é que a mera existência de uma avaliação final anónima e consequente induz no estudante a necessidade de um trabalho mais sério, cuidadoso e, a partir de certa altura, intenso, a fim de minimizar o risco de falhar essa etapa. E isto constitui mais um contributo positivo inestimável e insubstituível da avaliação externa para a aprendizagem.

Numa altura do ano em que, infelizmente, as polémicas sobre as avaliações externas tendem a ser reavivadas, é bom termos presente o insubstituível papel dos diversos “checks and balances”.

 
Publicado/editado: 01/05/2015