Intervalos por Fernando Pestana da Costa

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião abril de 2016



 


No ano em que a SPM faz 75 anos, este será um espaço onde a matemática vai ser o tema central todos os dias "uns" de cada mês. Intervalos será o título desta rubrica...                        

   

Fernando Pestana da Costa -  Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática                         



Intervalos por Fernando Pestana da Costa (Presidente da SPM) - Uma precisão fundamental, sem fundamentalismos

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião abril de 2016

 

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Título: Uma precisão fundamental, sem fundamentalismos


A precisão da linguagem é uma característica fundamental de toda a comunicação e, por maioria de razão, da comunicação de assuntos científicos, quer em contexto profissional, quer no ensino, ou até na divulgação.


A falta de precisão da linguagem, ou a utilização, por pessoas diferentes, dos mesmos termos de discurso para designar referentes distintos (por vezes mesmo radicalmente distintos) pode originar polémicas aceradas e inconclusivas. Embora francamente mais comum em áreas do conhecimento classificadas como mais soft, estes fenómenos estão também presentes e são bastante visíveis nas ciências exatas, onde são particularmente visíveis em períodos de “crise”, ou daquilo que Thomas Kuhn descreveu como mudanças de paradigma. 


Na Matemática essas grandes “crises paradigmáticas” parecem ser temas do passado: os grandes terramotos conceptuais provocados pelas Geometrias Não-Euclidianas, pela rigorização da Análise, pela Teoria dos Conjuntos, ou pela Análise Não-Standard, parecem estar seguramente enterrados há muitas décadas, nalguns casos até já desde o início do século XX. As linguagens e os conceitos surgidos dessas “crises” são hoje parte do património cultural comum e, nalguns casos, versões simplificadas percolaram mesmo até aos níveis de ensino obrigatório. 


Esta relativa uniformidade da linguagem, notações e conceitos é um fator importante de facilitação da comunicação Matemática e, naturalmente, do seu ensino, o qual deve ser devidamente apreciado e cultivado. Mas a uniformidade de qualquer destas características, apesar de presente em grau bastante maior na Matemática do que em outras áreas do conhecimento, não é atualmente, nem é provável que alguma vez venha a ser, absoluta.


Algumas dessas não uniformidades ocorrem tipicamente na transição do Ensino Secundário para o Ensino Superior e para a atividade do matemático profissional. Por exemplo: talvez por tradição histórica, aquilo que no Ensino Secundário se designa por “superfície esférica” é chamada “esfera” em qualquer texto de Geometria, de Análise em Rn, ou de Análise Complexa, e a “esfera” do Secundário toma nessas disciplinas a designação de “bola”.


Algumas não uniformidades têm a ver com fatores históricos e tradições com peso suficientemente grande para que cada uma das opções seja localmente estável. Um exemplo muito interessante é a notação utilizada na apresentação dos cálculos no algoritmo da divisão, a qual é apreciavelmente diferente nos países anglo-saxónicos e nos de tradição cultural francófona como o nosso. O algoritmo, esse, é obviamente o mesmo!


Outras não uniformidades são mais generalizadas e coexistem num mesmo espaço geográfico e cultural, tendo origens que (me) não parecem claras. Talvez o exemplo mais importante seja a definição ε-δ de limite de uma função f(x) num ponto xo, onde há duas definições não equivalentes comummente usadas, diferindo uma da outra pela inclusão ou exclusão de xo do intervalo em consideração para a variação de x. Em Portugal, aquele que é provavelmente o livro de Análise Matemática mais popular dos últimos 30 anos (“Introdução à Análise Matemática”, de Jaime Campos Ferreira) opta pela inclusão do xo. Tendo eu, como milhares de outros estudantes, aprendido a minha primeira Análise por este livro, e tendo também ensinado por ele largas centenas de alunos, não posso deixar de ser parcial na defesa da (na minha opinião) muito mais elegante opção de inclusão do ponto central do intervalo na definição de limite. Sendo esta também a opção de Terence Tao, um dos maiores génios matemáticos atuais, no seu excelente livro de Análise Matemática, sinto que estou em boa companhia. Mas, claramente, a outra opção é também muito popular.


No fundo, sendo a precisão de linguagem de extrema importância, nada nestas pequenas não uniformidades deve ser empolado ou exagerado: desde que saibamos precisamente do que estamos a falar quando usamos uma determinada designação ou notação o restante é acessório. E se é indispensável que todos os estudantes do ensino obrigatório de um dado país tenham uma linguagem comum (donde a importância da sua fixação clara nos documentos oficiais) já esperar uma uniformidade absoluta a outro nível é desrazoável: afinal, sendo a Matemática uma criação humana, há escolhas que são informadas por critérios não-matemáticos, sociais ou pessoais: pela História, pelo hábito, pela estética…


Seria uma pena que deixasse de ser assim!


Publicado/editado: 01/04/2016