(U)Ma Temática Elementar por José C. Santos

Eixos de Opinião novembro de 2014

 


A Matemática elementar tem muito que se lhe diga. Embora nos seja familiar, é sempre possível encará-la de um ponto de vista novo ou inesperado.                      

José Carlos Santos - Departamento de Matemática da FCUP             


Dia 21 de cada mês

                 


Artigo José Carlos Santos em (U)Ma Temática Elementar

Artigo de novembro de 2014

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Título: Geometria e Álgebra

É frequente que se usem figuras para tornar claras certas relações algébricas. Considere-se, por exemplo, a igualdade (a + b)2 = a2 + 2ab + b2. A figura abaixo torna-a natural.

 

É talvez pouco conhecido que este uso de construções geométricas tem uma longa história e que muitas vezes estas construções foram usadas não apenas para ilustrar as relações algébricas em questão mas para as justificar. Considere-se, por exemplo a distributividade da multiplicação relativamente à adição, ou seja, o facto de o resultado de se multiplicar um número pela soma de vários números ser a soma dos produtos do primeiro número por cada um dos restantes. Este enunciado é a primeira proposição do segundo livro dos Elementos de Euclides. Só que Euclides põe (e demonstra) este enunciado de uma maneira geométrica: se um rectângulo tem um lado de comprimento a e se é divido em vários rectângulos por linhas paralelas ao lado de comprimento a, então a sua área é a soma das áreas dos vários sub-rectângulos; veja-se a figura abaixo. O lado horizontal do rectângulo ficou dividido em segmentos de comprimentos b, b’ e b’’ e a proposição em questão afirma que a área do rectângulo grande (ou seja, a(b + b’ + b’’)) é igual à soma das áreas dos rectângulos pequenos (isto é, é igual a ab + ab’ + ab’’). 

 

Considere-se agora este problema: provar que, para cada natural n, a soma 1 + 2 + 3 + … + n é igual a (n2+ n)/2 (ou, o que vem dar ao mesmo, a (n + 1)n/2). Este é um problema clássico de indução matemática e vem como exemplo ou como exercício em qualquer texto sobre esse tópico. Mas pode ser resolvido sem se recorrer à indução. Considere-se um tabuleiro quadrado dividido em n2 quadrados idênticos, como na figura abaixo. Desses quadrados, considerem-se aqueles que estão numa das diagonais ou abaixo desta (representados a cinzento na figura). De quantos quadrados estamos a falar? Obviamente, há 1 + 2 + 3 + … + n tais quadrados. E, naturalmente, se se considerarem os quadrados que estão na diagonal ou acima desta, o seu número também é 1 + 2 + 3 + … + n. E se se juntarem todos estes quadrados? Então obtemos todos os quadrados do tabuleiro, mas é preciso ver que os quadrados da diagonal foram contados duas vezes. Está então provado que


2(1+ 2 + 3 + … + n) = n2+ n, 

o que é equivalente ao que se queria provar.
 


                                                            


Um argumento ligeiramente diferente e mais geométrico permite chegar à mesma conclusão. Consiste em pensar em termos de áreas e não de contagem. A região a cinzento da figura acima é formada por metade do quadradro grande juntamente com n metades de quadrados pequenos. Logo, se se tomar como unidade de área a área de cada um dos quadrados pequenos, a área da figura cinzenta é, por um lado, 1 + 2 + 3 + … + n e, por outro lado n2/2 (metade da área do quadrado grande) + n/2 (a soma das áreas de n metades de quadrados pequenos) e este último número é (n2 + n)/2.

Para terminar, vejamos agora como é que, por volta do ano 1000, o matemático árabe Al-Karaji provou que a soma dos dez primeiros cubos é igual ao quadrado da soma dos dez primeiros números, ou seja, que


13 + 23 + … + 103 = (1 + 2 + … + 10)2.


Para tal, Al-Karaji considerou a figura abaixo. O quadrilátero ABCD é um quadrado de lado 1 + 2 + … + 10, enquanto que o quadrilátero AB’C’D’ é um quadrado de lado 1 + 2 + … + 9. Além disso, o quadrado do canto inferior esquerdo tem lado 1 (é claro que a figura não está à escala!) e a sua área vai ser a nossa unidade de área. Então a área de ABCD é (1 + 2 + … + 10)2 e, por outro lado é a soma das áreas de duas figuras:

1. o quadrado AB’C’D’, que tem área (1 + 2 + … + 9)2;

2. o polígono DCBB’C’D’, que consiste num quadrado de lado 10 e em dois rectângulos de lados 1 + 2 + … + 9 (= 10×9/2, como vimos) e 10.

                                          


Logo, a área do polígono DCBB’C’D’ é 102 + 2×(10×9/2) ×10 = 102 + 102×9 = 103. Com tudo isto, deduz-se que (1 + 2 + … + 10)2 = (1 + 2 + … + 9)2 + 103. Agora pode-se usar o mesmo argumento, aplicando-o desta vez aos quadrados AB’C’D’ e AB’’C’’D’’, onde este último quadrado tem lado 1 + 2 + … + 8. Resulta daí que (1 + 2 + … + 9)2 = (1 + 2 + … + 8)2 + 93. Prosseguindo assim, conclui-se que, de facto, 13 + 23 + … + 103 = (1 + 2 + … + 10)2.

Naturalmente, nada do que foi feito é específico do número 10. O mesmo argumento, que mistura álgebra e geometria elementares, prova que a soma dos n primeiros cubos é o quadrado da soma dos n primeiros números.


Publicado/editado: 21/11/2014