Valor Absoluto por Paulo Correia

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião dezembro de 2015


 


Opiniões, reflexões e observações, sem pretensões... A Matemática, o Ensino da Matemática e outros aspetos relacionados, serão por aqui vistos e comentados, com algum humor - sempre pelo lado positivo e "moduladas" pelo exercício da profissão docente.              

 

Paulo Correia - Professor de Matemática da Escola Secundária de Alcácer do Sal e responsável pela página mat.absolutamente.net     


Valor Absoluto por Paulo Correia - Boa memória

Clube de Matemática SPM - Eixos de Opinião dezembro de 2015  

Título:  Boa memória


Apesar de não ter boa memória, recordo dois acontecimentos, aparentemente sem relação, noticiados no mês passado… talvez porque tiveram alguma relevância para mim. Confesso que recorri a registos escritos, de um e de outro, para maior segurança nos detalhes da escrita… como é costume na Matemática!


O matemático francês Cédric Villani em entrevista ao Jornal Expresso a propósito do seu novo livro “Teorema Vivo” declarou, num contexto coerente e explicado que “Há muitos matemáticos que não sabem a tabuada de cor”. E a frase continuava “É uma questão de memória bruta.”


A memorização da tabuada deve ser uma inevitabilidade, mais do que uma obrigatoriedade… Quando se propõem atividades matemáticas relevantes, a memorização da tabuada surge como consequência e não como a causa da aprendizagem. 


Todos nós memorizamos um conjunto de procedimentos que nos ajudam nas nossas tarefas, e a tabuada também é assim. Por exemplo, no local onde costumo comprar pães pela manhã (que custam 16 cêntimos cada), a senhora que lá trabalha sabe, de cor, a tabuada do 16 muito melhor que eu. Facto de que já se apercebeu, com algum divertimento, talvez por saber que sou professor de Matemática.


O que não é natural é impor a memorização de tabuadas (ou de outra coisa) sem que seja compreensível a utilidade ou a relevância do que é pedido… imagino que a senhora que vende o pão não saiba de cor a tabuada do 17, do 18 ou do 19, mas que venha a saber, daqui a algum tempo quando houver aumentos de preços, e que posteriormente venha a esquecer a tabuada do 16, como eventualmente já terá acontecido com o 13 ou com o 14… O que foi relevante no passado, já deixou de o ser!


Também no mês passado, o IAVE, publicou as Informações-Prova para 2016. A informação referente à prova do 3º ciclo não trouxe grandes alterações, apesar de versar sobre um programa completamente diferente… mas o formulário a constar na prova tem uma alteração: a omissão da fórmula resolvente para equações do 2º grau.


Naturalmente é fácil explicar esta alteração pela existência de uma meta com a redação «Saber de memória a fórmula resolvente...».


É importante esclarecer que esta alteração dificilmente terá algum impacto relevante nas classificações dos alunos. Qualquer aluno que tenha estudado a resolução de equações do segundo grau, de forma minimamente eficaz, saberá de memória a dita fórmula - porque precisou dela, e a utilizou, as vezes suficientes para a memorizar. 


Sempre foi assim...


Os outros alunos, que não sabem a fórmula, também não beneficiavam da sua inclusão no formulário, porque não a conseguiam aplicar devidamente, ou porque não conseguiam executar os procedimentos anteriores à sua aplicação. A possibilidade de consulta da fórmula nunca foi relevante para os alunos que não sabiam resolver equações do segundo grau...


Mas agora, a omissão da fórmula, e a sua valorização como uma meta curricular, faz surgir uma nova classe de alunos - os que não sabem aplicar a fórmula, ou fazer qualquer tipo de cálculos que a mobilize, mas que sabem “recitar” a fórmula de memória. Em coerência com a meta definida e com o formulário do exame, estes alunos devem ter algum tipo de mérito (e a correspondente cotação no exame), mesmo que se limitem a “recitar” a fórmula.


Reforçando que, também neste caso, dificilmente haverá algum impacto significativo nas classificações do exame, pretende-se chamar a atenção para o facto de esta visão do ensino da matemática valorizar competências acríticas e atribuir mérito a procedimentos que podem ser desligados de raciocínios ou trabalho matemático relevante… 


Como não conheço a opinião do matemático Cédric Villani sobre esta questão, arrisco imaginar o que ele dirá: «Há muitos matemáticos que não sabem a fórmula resolvente de cor. É uma questão de memória bruta.»


Publicado/editado: 11/12/2015