|
Distâncias (quase) infinitamente grandes e distâncias (quase) infinitamente pequenas estão intrinsecamente relacionadas no Universo de que fazemos parte e que aos poucos vamos tentando conhecer melhor. Nesta rubrica escreverei algumas palavras, e números (!), sobre o Universo que vemos quando olhamos para um céu estrelado numa noite límpida. Uma modesta contribuição para ajudar a reflectir sobre a nossa posição no contexto cósmico.
|
Este mês trago à memória outra referência televisiva. É uma série de televisão, acompanhada de um livro, que me marcou profundamente e que terá sido decisiva na escolha que a certa altura fiz para o meu futuro, e que me levou inexoravelmente para o reino das ciências exactas. Refiro-me a “Cosmos” de Carl Sagan. Em “Cosmos” Sagan leva-nos numa viagem pelo Universo, pela história do nosso planeta, pela história da ciência e por nós próprios. Transcrevo uma simples frase do episódio “A vida das Estrelas”: “Nós somos feitos de matéria estelar.”
Sim, leram bem. Nós somos feitos de matéria estelar! Diz-nos a literatura científica que da massa que constitui um indivíduo adulto da espécie humana, 65% está em átomos de oxigénio, 18% em átomos de carbono, 10% em hidrogénio, 3% em azoto, 1.5% em cálcio, 1% em fósforo, e depois potássio, enxofre, sódio, magnésio, cobre, zinco selénio, molibdénio, flúor, cloro, iodo, manganésio, cobalto, ferro, lítio, estrôncio, alumínio, silício, chumbo, vanádio, arsénio e bromo. Destes elementos, apenas o hidrogénio e o lítio não foram sintetizados nas estrelas. Todos os outros átomos do nosso corpo foram alguma vez parte do núcleo de uma estrela ou foram criados numa enorme explosão estelar que marcou o fim da existência de uma estrela.
Há cerca de 13 800 milhões de anos, nos minutos que se seguiram ao Big Bang, formaram-se átomos de hidrogénio, hélio, lítio e berílio. Estes eram todos os elementos químicos existentes no universo: os elementos primordiais. Os restantes elementos só começam a aparecer após a formação das primeiras estrelas.
Nuvens de gás de hidrogénio e hélio primordiais foram colapsando por acção do seu próprio peso acumulando-se em regiões cada vez mais densas e quentes. Quando nalguma dessas regiões a temperatura atingiu cerca de 10 milhões de graus centígrados desencadearam-se processos de fusão de núcleos de hidrogénio que têm como resultado a produção de energia (o núcleo do hidrogénio é constituído por apenas um protão). A energia assim gerada impediu que as nuvens de hidrogénio e hélio continuassem a colapsar. Tinham-se formado as primeiras estrelas.
Uma estrela existe num equilíbrio contínuo entre o seu próprio peso, que tende a colapsá-la, e as forças de pressão geradas pela produção de energia no núcleo. Durante a maior parte da existência de uma estrela hidrogénio é convertido em hélio na região central, onde a temperatura é suficiente para que ocorram as reacções de fusão nuclear. Uma vez esgotado o hidrogénio no núcleo da estrela a taxa de produção de energia diminui drasticamente e a estrela começa de novo a colapsar por acção do seu peso. Este novo colapso produz um aumento gradual da temperatura no centro da estrela, onde já só há hélio, elemento que entra em fusão nuclear quando a temperatura atinge cerca de 100 milhões de graus centígrados. Um dos resultados da fusão de núcleos de hélio é a formação de carbono. Pela primeira vez na história do universo aparece o carbono, elemento essencial à vida tal como a conhecemos na Terra. Nesta fase aparecem também os primeiros núcleos de oxigénio por fusão de hélio com o recém-formado carbono. Na estrela a história repete-se... Uma vez terminado o hélio no núcleo da estrela, este volta a colapsar, e a temperatura aumenta até atingir valores que permitam reacções de fusão do carbono e do oxigénio. Começam a aparecer sódio, néon, magnésio, silício, fósforo e enxofre. A estrela é uma verdadeira fábrica de elementos químicos. Este tipo de processo progride até a estrela ter ferro no núcleo e aqui termina a síntese de elementos na estrela. A fusão de núcleos de ferro não é energeticamente viável, mesmo para uma estrela, e o colapso é inevitável. Este colapso final desencadeia um conjunto de acontecimentos que terminam com a existência da estrela como tal. Uma enorme explosão, denominada por explosão de supernova, desfaz literalmente a estrela, mas a energia nela libertada permite a formação de elementos mais pesados que o ferro. Cobre, zinco, arsénio, selénio, cobalto, estrôncio, chumbo, ouro, prata, urânio... Todos formados em explosões de supernova.
A destruição da estrela lança para o espaço elementos até então inexistentes. A formação de novas estrelas a partir dos restos das estrelas primordiais continuou o processo, enriquecendo o meio interestelar com oxigénio, azoto e carbono, os elementos mais abundantes no universo logo a seguir ao hidrogénio e ao hélio. Nem todas as estrelas terminam a sua existência como uma supernova. As estrelas de menor massa, que constituem a grande maioria das estrelas no universo, terminam os seus dias devolvendo ao meio interestelar, de um modo mais calmo e suave, a matéria que processaram, contribuindo para uma cada vez maior abundância de elementos mais pesados do que o hélio.
A certa altura na história do universo, numa região inconspícua de uma galáxia, o colapso gravitacional de material interestelar formou uma estrela vulgar e em volta dela um conjunto de planetas. Num desses planetas, o terceiro a contar da estrela, desenvolveu-se vida. Essa vida foi evoluindo e ao fim de muitos milhões de anos apareceu uma espécie animal que desenvolveu uma prática chamada ciência, através da qual foi capaz de perceber que o material de que são feitos os indivíduos da espécie, e de todas as espécies existentes no planeta, foi produzido no seio de estrelas há muito desaparecidas, e em explosões das quais não há memória.