Entrevista ao Prof. Dr. João Araújo, Presidente da SPM - Parte I

Clube Entrevista

O Clube de Matemática da SPM na sua rubrica "Clube Entrevista" conversa com o Prof. Dr. João Araújo – Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática e Professor da Universidade Nova de Lisboa, cumprindo assim uma tradição de 12 anos, desde janeiro de 2011, a todos os seus presidentes. 

Parte I

Em pequenos cálculos como foi a sua infância?

Maravilhosa. Era deixado na casa dos meus avós no Minho em 15 de junho e só voltava “à civilização” em 14 de outubro quando começavam as aulas. A minha bicicleta verde nas bouças era um cavalo branco a correr nas pradarias do oeste americano com uma pistola de fulminantes no coldre, e aos saltos nas cangostas era uma Moto Guzzi; os cadouços eram os tipis dos índios; à noite ia pelos caminhos escuros a assustar as senhoras que levavam o leite ao posto de recolha; havia as desfolhadas pela noite dentro; os jogos de futebol do “muda aos dez, acaba aos vinte” que terminava com “o próximo a marcar ganha” e nunca ninguém sabia o resultado pois alguns golos eram “bola alta” por quem os sofria; havia as corridas de pneus, ir aos ninhos, pesca com canas improvisadas (um ótimo negócio para o vendedor de anzois, mas sem grande efeito prático), arraiais de verão com música pimba o dia todo, nadar na levada ou no mar de Esposende que parecia uma matilha de cães a ferrar na pele; e tinha imensos animais (ir aos ninhos compensava): uma águia, um mocho, melros, faisões, pombas, codornizes, etc. É pena as crianças de hoje terem escola das 8:30 às 16:30, extracurriculares depois, praia em agosto, e voltam para as aulas das 8:30 às 16:30...

A paixão pela matemática tem origem em que referencial?

Eu sempre gostei de desafios “matemáticos”, tentar provar teoremas novos, embora a disciplina de matemática em si me parecesse pouco interessante (aprender receitas para resolver problemas). Lembro-me de com uns 16 anos me ter sentado à mesa: “Não saio daqui até descobrir a prova da fórmula fundamental da trigonometria” e ficar muito frustrado dois minutos depois por ser “só” o teorema de Pitágoras: “não custava nada à professora ter dito isto”. Mas até ao 12.º eu queria ser veterinário, tal como o James Herriot, o veterinário do Yorkshire. No 12.º o meu professor também dava aulas na universidade e vi muitas provas pela primeira, vi a “máquina” por dentro, e fiquei fascinado. Acabei a fazer doutoramento em matemática no Yorkshire! 

É professor da Universidade Nova de Lisboa. O que ensina neste momento?

Ao curso de matemática dou teoria de grupos e anéis, com um pouco de Teoria de Ramsey (para os alunos do segundo ano verem a matemática em todo o seu esplendor!), e Álgebra Computacional, essencialmente inteligência artificial aplicada à prova de teoremas; em informática dou matemática discreta (combinatória, grafos, indução estrutural, etc.) e alguma matemática computacional para ver se algum se interessa pelo lado bom da força! 

É presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM). Este cargo é...

a possibilidade de fazer grandes coisas pela matemática toda e pelos matemáticos todos, pensando no que interessa à comunidade, ao contrário do habitual foco no interesse do departamento. Mas sobretudo é a possibilidade de conhecer imensas pessoas e iniciativas brilhantes, organizadas um pouco por todo o país, que mobilizam, inspiram e aproximam a matemática das pessoas.

No programa da Renascença "Aura Miguel Convida"

A SPM tem um papel fundamental de regulador da qualidade do ensino da matemática em Portugal. Como tem sido cumprido este objetivo?

A qualidade do ensino não resulta de convicções pessoais e subjetivas; há programas e intervenções pedagógicas que funcionam muito bem; outros funcionam bem; outros mais ou menos; outros custam dinheiro e não têm nenhum benefício, outros são muito maus ou até nocivos. Como sabemos isto? Pela investigação na área. O que é preciso fazer para aplicar em Portugal os melhores programas e as melhores intervenções pedagógicas? Olhar para a ciência. É isso que acontece? Não. Este debate foi sequestrado por politiquices e está todo inquinado. Além disso há matemáticos a pensar que por saberem alguma matemática universitária, facilmente se tornam especialistas na matemática do básico. Isso é falso. É preciso estudar muito e saber muito para conseguir fazer um programa do básico. Finalmente, nesta matéria, como em tudo mais, é preciso continuar a distinguir conjeturas de teoremas: para que uma intervenção pedagógica seja benéfica não basta que a ideia pareça razoável ao seu autor. Quando algumas cabeças não têm juízo as crianças é que pagam...

A sua direção tem implementado uma série de ideias brilhantes para a matemática. Quer desfiar algumas delas? 

Os matemáticos passaram a poder organizar retiros para investigação em imersão total na Rede Pedro Nunes, no Convento da Arrábida e no Centro de Alto Rendimento do Pocinho. Espero que a Rede seja suficientemente atrativa para os maiores matemáticos da atualidade virem cá colaborar com portugueses. 

Houve uma intenção deliberada de criar uma imagem da SPM mais próxima das pessoas, idealmente uma imagem fascinante em que se mostra a maravilha da matemática, a solidariedade da matemática, a preocupação pelo ensino e professores, etc. Foram 11 horas de televisão, 12 horas de rádio, 10 capas de jornais, 40 páginas nos jornais, muitos artigos de opinião. Ainda há imenso a fazer nesta linha, mas o comboio está em movimento e há que aproveitar. O modelo era criar uma imagem à “Rogério Martins”: intervenções matematicamente fascinantes, sempre com um sorriso!

Tivemos os dois ENSPM em que matemáticos excecionais atraíram 67 sessões paralelas e 800 professores e investigadores ao ENSPM21 virtual e cerca de 250 participantes no ENSPM2022, com 44 sessões paralelas. Uma nota curiosa sobre o ENSPM2021 é que a Professora Patrícia Gonçalves (IST) conjeturou que Hugo Duminil-Copin seria Medalha Fields em 2022 (como aconteceu) e por isso foi convidado e colocado a fazer a última comunicação plenária do Encontro (seguindo a tradição de que em último lugar fala uma das estrelas da conferência para que todos fiquem até ao último momento).

Outro dos objetivos, desde o primeiro dia, foi a criação de prémios: um para consagrar grandes feitos em investigação; outro para distinguir e homenagear um professor do básico/secundário; havia ainda a ideia de criar um para alunos do básico, mas esse deparou-se com problemas práticos importantes. Talvez alguém retome a ideia no futuro. O Prémio António Aniceto Monteiro, UNILABS-SPM, cujo júri incluía Irene Fonseca, Martin Hairer, André Neves e Marcelo Viana, distinguiu Afonso Bandeira, na primeira edição.

O Prémio Álvaro Gonçalves AAG-SPM distingue a visão, dedicação e resultados de um professor do básico/secundário, e conta no júri da primeira edição com nomes como Ramalho Eanes, Maria Cortez de Lobão, Marçal Grilo e Nuno Crato. Na apresentação do prémio contou com a presença dos principais meios de comunicação social nacionais e Luís Marques Mendes fez referência ao prémio no Jornal da Noite (SIC) a 10 de julho.

Algo muito importante, que exigiu imenso esforço, mas não aparece nos jornais é o facto da SPM ter agora a propriedade intelectual do seu site que foi renovado. Qualquer iniciativa nova com valor acrescentado para os sócios passa seguramente pelo site. Agora facilmente pode ser feita contratando livremente quem a implemente pelo menor preço. 

No ensino básico/secundário, o programa de Testes SPM permitiu dar contexto ao trabalho das escolas. Foram 97 escolas em 2021, 126 em 2022, milhares de alunos em cada ano, e uma plataforma produzida de raiz. Isto permite uma radiografia contextualizada e muito fina pois o feedback diz: 45% dos alunos desta escola não conseguiu colocar em evidência e isso é o 3.º pior resultado de Portugal. A escola fica a saber claramente em que ponto deve trabalhar. Reciprocamente, é bom saber que em determinados aspetos nenhuma escola da região ou do país foi melhor. 

Em conjunto com a EMS-Press foi repensada e reorganizada a Portugaliae Mathematica, com novo corpo editorial devotado à missão de a elevar na cadeia do prestígio científico, um esforço que os fundadores da revista seguramente aprovariam. O esforço é monumental, mas a revista tem a equipa editorial certa para o conseguir.

Houve pela primeira vez uma vice-presidente professora do secundário e eleição de sócios honorários nos quatro pilares da SPM: investigação, ensino, divulgação e história: Jorge Almeida, Nuno Crato, Gracinda Gomes, Henrique Leitão, Luís Magalhães e Luciano Santos. 

Promoveram-se frequentes reuniões multitudinárias da Sociedade e seus Amigos de forma a apresentar o trabalho a todos, em particular a celebração dos 80 anos contou com mais de 100 pessoas. Em 2022 a palestra do dia do Pi de Rogério Martins para quatro mil crianças de 5 anos espalhadas por todo o país sobre as formas geométricas que quando são colocadas em água permanecem na posição em que as deixam (tal como acontece com o círculo; uma pergunta de S. Ulam em Lvov, atual Lviv). 

O centro de formação teve imensa atividade e foram muito importantes as formações (em cooperação com a Universidade Aberta) sobre ensino online. Muitas pessoas foram atiradas para o online na pandemia apenas equipadas com senso comum quando o ensino online que funciona é altamente contra-intuitivo. O Cnetro de Formação teve um total record de 1784 formandos.

O número de sócios subiu de 717 em 2020 para 912 em 2021, aumentando o envolvimento com a Sociedade e os custos fixos assegurados por receitas próprias. 

Interessante também o acordo sobre um concerto SPM-Gulbenkian de música gerada por inteligência artificial, incluído no programa da temporada de música da Gulbenkian 2023. Há relação entre AI e matemática? Há: é que AI é a parte realmente matemática da informática. E até agora, os sucessos mais estrondosos da AI têm sido em matemática (a resolver problemas que derrotaram os maiores matemáticos da atualidade). Ver o que já se consegue fazer na linguagem que todos percebem (música) dá uma ideia do que consegue em áreas onde o impacto não é tão percetível ao público em geral.

E sempre as preocupações financeiras... Mas terminamos serenamente com o Conselho Fiscal a saudar a folga financeira conseguida. A próxima Direção terá mais dinheiro na conta do que nós tínhamos quando entrámos. 

Mas tudo isto não são pedras soltas; são iniciativas focadas na resposta à pergunta das perguntas: para quê ser associado? Esta é a pergunta que todas as direções de todas as sociedades de matemática têm de conseguir responder e isso exige uma multiplicidade de ideias e iniciativas. Duvido que exista uma resposta única. 

 

Continua...

 

Por Carlos Marinho

Publicado/editado: 19/07/2022