Intersecções por Daniela Gonçalves - Ajustar ao sistema ou ao mundo de vida?

Eixos de Opinião - Abril de 2018

Título: Ajustar ao sistema ou ao mundo de vida?

Segundo a proposta analítica de J. Habermas (1987), a sociedade pode ser entendida segundo dois vetores: como sistema e como mundo de vida. Cada um deles recorre a princípios de regulação diferentes, ou seja, o sistema (auto)regula-se redondamente enquanto que o mundo de vida remete para a coordenação das ações através da harmonização das orientações para a ação. De outro modo, o sistema induz uma lógica que condiciona a ação pelos imperativos do poder e da lógica economicista, enquanto que o mundo de vida é aquele que oferece o contexto, onde se dá a ação comunicativa, isto é, prende-se com os mundos socioculturais da vida que se reproduzem na interação e nas intersecções. 

Aplicando à escola esta proposta de Habermas, ela aparece como uma instituição enraizada no mundo da vida social e, por isso, como arena de inter-relações do sistema como o mundo de vida. Como sistema, a escola revela o seu carácter institucional e (auto)regulado, em que as funções dos membros da escola são de facto reguladas mediante normas oficiais a partir da hierarquia institucional. Como mundo de vida, ela apela para as ações que se coordenam através das interações comunicativas que se estabelecem entre os seus membros.

Então, o mundo de vida escolar diz respeito a fatores cuja funcionalidade relaciona-se com necessidades interativas que se originam no seio da comunidade escolar, apelando para uma racionalidade comunicativa da ação educativa, para uma racionalidade reticular, com componentes éticos, permitindo, desta maneira, a reconstrução crítica de situações sociais que frequentemente aparecem contaminadas por mecanismos de domínio dos interesses particulares sobre os coletivos.

Uma das consequências deste modo de perspetivar a escola é que não podemos analisar os fenómenos que se produzem no seu seio como processos autónomos ou, em alternativa, como processos meramente reprodutores. Assim, não é possível separar analiticamente os aspetos relativos ao mundo de vida, dos seus membros e dos que têm como principal finalidade manter a sobrevivência da própria instituição. Por conseguinte, todas as ações realizadas pelas instituições educativas podem-se analisar segundo estas duas racionalidades: a racionalidade instrumental do sistema e a racionalidade comunicativa, crítica e democratizante do mundo de vida. Se há ações que, pela sua natureza e finalidade, cumprem uma função predominantemente instrumental de integração funcional (como será o caso, por exemplo, das ações burocrático-administrativas), outras devem tentar obedecer mais aos critérios da razão comunicativa, crítica e democratizante, visando acordos e consensos sem coações em decisões apoiadas.

Em síntese, a escola, desde uma perspetiva macrossocial, conjuga um modelo de racionalidade instrumental com outro de natureza comunicativa e crítica; ao mesmo tempo, e numa perspetiva (micro)social, ela acrescenta dois tipos de racionalidade – democratizante e educativa – que impregnam as ações quotidianas da escola e os princípios argumentativos dos atores educativos.

Esta compreensão da escola e das ações escolares não pode deixar de ter implicações, não apenas na definição da escola como organização, mas também na compreensão do modo como, no seu interior, se vivenciam determinadas noções como as de bem comum. A escola não pode ser perspetivada meramente como locus reprodutor de definições oficiais estabelecidas por entidades externas a ela. Ao mesmo tempo, não podemos cair na restrição de definir a escola apenas como ação comunicativa, que possibilita interpretações mais contextualizadas (e produtivas) de bem comum.

Este enfoque das organizações educativas requer, então, que os professores e outros atores educativos pensem a sua ação, a sua formação para a ação, no contexto da dupla funcionalidade explicada anteriormente. Os atores educativos e pedagógicos podem reforçar a racionalidade instrumental sistémica ou a racionalidade comunicativa, crítica, democratizante e educacional do mundo de vida, a qual tende a despertá-los para a criação de espaços de reflexividade e de emancipação.

Os professores podem, por exemplo, despender os seus esforços na consolidação dos critérios da eficiência e da eficácia organizativas e funcionalistas que asseguram uma maior justiça e equidade na formação. Mas também podem denunciar certos critérios de eficiência e eficácia como incompatíveis com as necessidades de carácter democratizante que surgem no mundo de vida da escola, porque não são valores socialmente construídos por todos (dimensão coletiva da profissão).

Apesar da dependência do sistema educativo, a escola e os profissionais da educação, devem, portanto, (re)interpretar e (re)definir a organização – entendida, agora, como uma unidade do sistema capaz de mediar a interpretação que das funções sistémicas se possa fazer a partir do mundo de vida organizativo. Por outras palavras, a escola e os profissionais da educação são co-participantes dos processos que ocorrem na educação e, também, com as aplicações das funções sistémicas e a sua interpretação por parte dos diferentes atores. E de tal modo é assim que eles podem favorecer mais o ajuste ao sistema ou, então, ao mundo de vida.

Publicado/editado: 08/04/2018