Quadrantes por Francisco Fernandes - Frei Miguel Contreiras: o frade santo que tem uma Avenida em Lisboa mas que nunca ninguém viu

Eixos de Opinião de Maio de 2022

 

 

 

 

Francisco Fernandes - Arqueólogo e Professor de História


Título: Frei Miguel Contreiras: o frade santo que tem uma Avenida em Lisboa mas que nunca ninguém viu

Quem em Lisboa está em Alvalade e que ir da avenida de Roma à avenida Almirante Gago Coutinho, tem de percorrer a avenida Frei Miguel Contreiras, onde se situa mesmo a estação de comboio Roma-Areeiro.

Mas quem foi este personagem histórico que teve direito a ficar imortalizado na toponímia da capital do nosso país? Que feitos terá desempenhado? Que papel relevante terá tido na nossa história?

Segundo a nossa historiografia, frei Miguel Contreiras era um frade espanhol do século XV, pertencente à ordem da Santíssima Trindade que andava por Lisboa acompanhado por um burro e um anão, a pedir esmolas para entregar aos mais pobres da cidade, tendo aí falecido em 1505.Terá sido prior do convento da Trindade, local onde terá sido enterrado mas que foi destruído aquando do terramoto de 1755.

Mas o seu fato de maior relevância é ter sido confessor de D. Leonor, a filha do infante D. Fernando que veio a tornar-se rainha ao casar-se com seu primo D. João II, e a ter influenciado a fundar a primeira misericórdia em Portugal, mais concretamente a Misericórdia de Lisboa.

Aliás Frei Manuel Contreiras é considerado mesmo o primeiro provedor da Misericórdia de Lisboa, sendo até retratado em várias telas, em livros históricos desde o século XVI e mesmo na bandeira da misericórdia que terá sido pintada por volta de 1576, destacando-se o seu papel fundamental na criação daquele instituição.

Contudo, é cada vez mais aceite; à luz da investigação histórica mais recente, que o frei Miguel Contreiras foi uma das maiores fraudes históricas já criadas.Vários investigadores, com destaque para Ivo Carneiro da Faculdade de Letras da Universidade do Porto e Isabel Sá da Universidade do Minho, vêm afirmando que não existem nenhum menções históricas documentais a Frei Miguel, não existindo mesmo qualquer memória impressa ou manuscrita anterior a 1574-75 a ele, 70 anos após a sua pretensa morte e 76 anos depois da fundação da Santa Casa.

Como Ivo Carneiro afirma, “o que existe documentalmente sobre frei Miguel não chega sequer para fazer uma certidão de óbito”.Mas afinal quem “inventou” este lendário frei Miguel e porque é que ele foi criado?

O seu criador foi um responsável da Ordem da Trindade, Bernardo da Madre de Deus, este sim um verdadeiro frade trinitário, que menciona pela primeira vez o frei Miguel, num pedido feito à Misericórdia de Lisboa em 1574, onde solicitava que a imagem do frei Miguel voltasse a ser pintada nas bandeiras e caixas de esmolas que a Misericórdia possuía. Esse pedido foi negado mas que depois de um processo que envolveu o próprio bispo de Lisboa, onde apenas 4 testemunhas admitiram ter ouvido falar do frei, foi aceite a sua imagem de velho frade trinitário, surgindo depois a sua biografia, embelezada com o facto de ter sido confessor da rainha e principal mentor da fundação da Misericórdia.

Motivos, uma enorme crise financeira que a ordem da Santíssima Trindade enfrentava, estando mesmo em causa a sua extinção em Portugal, pois aquele que era o seu principal papel, o resgate de cativos cristão, dependendo por isso das esmoas, passou a ser realizado também pela Misericórdia, que tinha agora mais prestígio e poderio económico. Só um milagre a poderia salvar e ela foi operado por frei Bernardo de Madre de Deus, criando a figura de frei Miguel Contreiras, o frei trinitário que fundou a Misericórdia, tendo esta história sido aprofundada após a união ibérica de 1580, como forma de demonstrar a influência castelhana em Portugal, associando este frade à fundação da Misericórdia.

Mas esta é já uma história de outro Quadrante.

 

Publicado/editado: 20/05/2022