Se e Só Se por José Carlos Pereira - Aritmética Elementar na Televisão?

Eixos de Opinião de novembro de 2018

Título: Aritmética Elementar na Televisão?

Já tinha decidido que o artigo deste mês iria ser sobre Combinatória e sobre um tipo de problemas sobre o qual, nos últimos tempos, tenho sido várias vezes questionado. Contudo, na noite da mudança para a hora de Inverno, quando me preparava para ver um filme, um programa de televisão prendeu-me durante alguns minutos, o que me fez mudar de ideias.

Certamente que o leitor já se cruzou com um daqueles programa da SIC ou da TVI que convidam os espectadores a ligar para responderem a uma charada a troco de algum dinheiro. Foi exactamente um desses programas, o “Vamos Jogar” da SIC, que nessa noite reteve a minha atenção. No momento em que passei por lá a charada que estava em antena, e que no final valeria 1400 euros no caso de ser dada a resposta correcta, era a seguinte:

“5 + 3×(17 + 4) + (18 + 2)×8 + 8 + 45÷(5×7)

Some todos os números!”

Na altura pensei para os meus botões e em seguida comentei com a minha esposa, também ela professora de Matemática, “aposto que a resposta que vão dar estará errada”. A razão dessa minha aposta não resultava de uma suposição de que a Produção do programa não soubesse fazer o cálculo e apresentar a resposta correcta, foi o facto de o resultado da operação 45÷(5×7) não ser um número inteiro, mais precisamente, de ser uma dízima infinita periódica, que me fez pensar que apresentariam um valor aproximado, por exemplo 237,3 ou 237,28 ou mesmo 237, e não o valor exacto que é 1661/7. 

Fui então ver o filme e após o seu final voltei à SIC e retrocedi até conseguir ver a solução que tinham dado. Fiquei espantado. Teria ganhado a aposta, e por muito! A resposta dada pela Produção foi 613! O que é que um professor de Matemática pensa quando é confrontado com esta resposta, aparentemente absurda? Naturalmente: “onde é que foram desencantar esta solução? Mas que raio de contas é que fizeram?”. A meia hora seguinte foi ocupada por tentativas para descobrir o cálculo que tinha sido efectuado para chegar ao 613. Tentámos tudo, eu e a minha esposa. 

Teriam somado o 5 com o 3 e só depois multiplicado pela soma de 17 com 4, dividido 45 por 5 e só depois multiplicado por 7? Ou seja:

(5 + 3)×(17 + 4) + (18 + 2)×8 + 8 + 45÷5×7

Não, não foi isso que fizeram, pois então o resultado seria 339. 

E se além disso, tivessem primeiro somado os dois 8 e só depois tivessem multiplicado pela soma de 18 com 2? Ou seja:

(5 + 3)×(17 + 4) + (18 + 2)×(8 + 8) + 45÷5×7

Não, também não. O resultado desta operação é 551. 

Reparámos então que há um 3 e um 8 que estão escritos na “forma digital”. Como desconhecíamos o programa, pensámos que aqueles 3 e 8 pudessem significar outra coisa, por exemplo 13 e 18: 

5 + 3×(17 + 4) + (18 + 2)×8 + 8 + 45÷(5×7) = 5 + 13×(17 + 4) + (18 + 2)×18 + 8 + 45÷(5×7)

O valor aproximado desta operação é 647, a diferença para 613 não é muita, mas mesmo assim não poderia ser. 

Era claro que não poderia ser apenas a soma dos números que apareciam na imagem, uma vez que essa soma era 122 ou 146, considerando, por exemplo, que no 17 teríamos somar o 1, o 7 e o 17. Mesmo somando o 123 que aparece na capa do livro da professora da imagem mais os seus desdobramentos, nunca chegaríamos ao 613. As nossas tentativas matemáticas para desvendar o possível raciocínio que conduziu ao resultado apresentado esgotaram-se. Desistimos, mas antes coloquei a foto que está no início deste texto no meu perfil do Facebook.

No outro dia de manhã a tal publicação no Facebook ajudou a resolver o mistério. Alguns amigos enviaram-me links para vídeos no Youtube e para um fórum de discussão na Internet (mais à frente neste artigo encontrará esses links) onde são discutidas, eu diria que apaixonadamente, este tipo de charadas – afinal esta não tinha sido a primeira vez que a Produção do programa colocou uma destas charadas. A teoria defendida é a de que numa primeira vez enganaram-se nos cálculos e em vez de assumirem o erro criaram um conjunto de regras peculiares, digamos, de modo que a solução correcta fosse aquela que tinha sido dada. Não faço a mínima ideia se foi mesmo isso que aconteceu, e este texto não tem como objectivo reflectir se assim terá sido ou não. Num desses links é possível ler um e-mail da Produção do programa onde são divulgadas algumas dessas regras. É isso que me interessa. Tentei encontrar um documento oficial com todas as regras, mas não consegui. Perdendo algum tempo a analisar as que conhecia, parecem existir algumas inconsistências e incoerências, nomeadamente na questão de alguns símbolos valerem um determinado valor numérico, mas os mesmos símbolos numa outra posição já não valerem esse valor. Estas regras foram adoptadas nos desafios seguintes mas, como era previsível, nem sempre funcionam como aparentemente deveriam funcionar. 

A título de exemplo deixo algumas dessas regras: o símbolo de multiplicação não representa a multiplicação usual, é o 10 em numeral romano; o símbolo de soma representa o número 2, como? O símbolo + separa-se em dois traços, − e l, sendo que o traço horizontal roda para ficar na vertical ficando então II, o numeral romano que representa o 2; o símbolo de igualdade também representa o número 2, rodando-o de forma a ficar na vertical, aparece novamente o II; os próprios símbolos que estão nos cantos e que parecem L, representam o numeral romano para 50 e por isso valem 50. No entanto, parece que nem todos os L valem 50. A regra aqui não é muito clara; quando aparece um número formado por dois algarismos, esse número representa a soma dos seus algarismos com ele próprio. Por exemplo, 34 será 3 + 4 + 34 = 41, aparentemente devem-se somar todos os números visíveis. E se o número tiver mais de três algarismos, por exemplo 145, como será? Não conheço a regra, mas poderá ser 1 + 4 + 5 + 145 = 155, ou, mais coerentemente, 1 + 4 + 5 + 14 + 45 + 145 = 214. Temos ainda os “números defeituosos” – são os que estão cortados – aqui só de deve considerar a parte que de alguma forma se assemelhe a um número. Desta forma, o 4 e o 5, que na imagem estão cortados, valerão, possivelmente apenas 1 cada um:  

                      

É tudo muito confuso, mas há mais! 

E os números escritos na "forma digital"? Há alguma razão para tal? Há, parece que há. No e-mail que li nada é dito sobre os números escrito na "forma decimal", mas percorrendo os fóruns é possível perceber que o 8 na "forma decimal" não é 8, é 1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7 + 8 + 9 = 45. E porquê? Porque com os sete “led’s” do 8 digital acessos é possível formar os números do 1 ao 9:

                          

Imaginemos que numa destas charadas aparecia o número 88 escrito na "forma digital". A que corresponderia? Com o 88 escrito na "forma digital" é possível escrever todos os números naturais compreendidos entre 1 e 99, pelo que:

Aqui daria muito jeito saber o que é uma progressão aritmética, ou pelo menos conhecer a famosa história do pequeno Gauss, para chegar rapidamente ao resultado: (1 + 99)×99/2 = 4950.

Então, exemplificando, tendo em conta estas regras, qual é a soma de todos os números de 3×(13 + 1) + 3 ?  

Já vimos que o símbolo + representa o 2 e o símbolo × o 10. Por outro lado, o 13 representa 1 + 3 + 13 = 17. Como com o 3 escrito na "forma digital" podemos formar o 1, o 3 e o 7, vem que  3 = 1 + 3 + 7 = 11. Somando todos os números de 3×(13 + 1) + 3   a resposta é:

3 + 10 + 1 + 3 + 13 + 2 + 1 + 2 + 1 + 3 + 7 = 46.

Há um nível assinalável de criatividade, mas de uma forma claramente rebuscada! Caso o leitor esteja curioso, pode ver aqui, aqui e aqui, e em seguida tente chegar à resposta da charada que motivou este artigo. Não será tão simples como o exemplo anterior. Eu já lá cheguei perto, mas ainda não consegui, talvez por não entender devidamente as regras e não as conhecer na sua totalidade. 

Serão estas charadas problemas de Matemática? Com algum esforço e boa vontade até podemos achar que sim. Temos uns símbolos que na realidade representam números, uns números que não representam esse número, mas uma soma de vários números, e um conjunto de regras, elaborado mas inconsistente, que faz parecer que estamos perante problemas Matemáticos. Na verdade “só” temos de identificar o valor numérico de todos os símbolos e no final somar tudo. É-me muito difícil classificar isto como Matemática. 

Agora que o leitor já conhece as dinâmicas deste passatempo caber-lhe-á a decisão de jogar ou não.

Já me fizeram milhares de vezes a pergunta com que todos os professores de Matemática são confrontados: “mas a Matemática serve para quê?”. Na próxima vez responderei: “serve para perder 1400 euros!” 

Convido-o o leitor a deixar o seu comentário a este artigo na página do Facebook do Clube SPM

Publicado/editado: 03/11/2018