Teoria de Jogos por Alda Carvalho - Os jogos no pré-escolar: o RAAAPIDOO e o sistema de numeração binário

Eixos de Opinião de Abril de 2021

Alda Carvalho - Docente do Ensino Superior e Investigadora do CEMAPRE/ISEG. (Ver +)


Título: Os jogos no pré-escolar: o RAAAPIDOO e o sistema de numeração binário

Quando pensamos em jogos para a idade pré-escolar, há uma série de fatores a ter em conta. Uma categorização dos jogos para esta faixa etária pode ser vista aqui. Neste texto pretende-se referir alguns aspetos importantes e apresentar uma proposta, sob a forma de jogo, para introduzir/trabalhar conteúdos na educação pré-escolar. 

Não é fácil definir “jogo” de uma maneira formal e delimitada. Ao contrário de conceitos como justiça/injustiça, beleza/fealdade e verdade/mentira, o jogo não admite propriamente algo que se possa considerar contrário. Apesar disso, o lugar do jogo é intocável, importante, totalmente necessário na cultura e ascensão humana, tanto pessoal como civilizacional.

O historiador holandês Johan Huiziga (1872-1945), no seu Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, aponta algumas ideias interessantes: 

1. O jogo é uma atividade livre, conscientemente exterior à “vida normal”, um aspeto “não sério” da vida, mas que, ao mesmo tempo, é desenrolado com seriedade, absorvendo intensa e completamente o jogador. 

2. O jogo desenrola-se dentro de uma zona própria de tempo e de espaço, de forma ordeira, de acordo com “as regras”.

O que distingue a ideia de jogo em idade pré-escolar e a ideia de jogo para pessoas com idade mais avançada é a “dose” de importância dada aos pontos 1 e 2. Em idade pré-escolar, o ponto 1 é essencial. A criança representa, “faz de conta”, “fala por pessoas, objetos, animais”, manipula coisas, desenha e pinta, observa avidamente. A “manipulação e imaginação” da realidade é a chave para uma boa compreensão do jogo infantil. A importância está quase toda aí, havendo um maior relaxamento quanto ao ponto 2, mais relacionado com a estrutura do jogo. Apesar do que foi dito, não se pense que as crianças pequenas não estabelecem as suas regras.

Imagine que uma criança entra numa sala e vê animais que voam para um lado e animais que vivem debaixo de água para outro. Perante a pergunta “Por que é que os animais estão separados assim?”, é solicitado um critério definidor de uma classificação. E sabido que o trabalho sobre propriedades e critérios é um dos mais importantes a serem feitos na fase pré-escolar (uma discussão exaustiva sobre esta temática pode ser vista aqui). Há uma série de categorizações típicas: animais de várias espécies, vestuário, profissões, etc. Todo o vocabulário que é aprendido é estruturante. Nada mais apelativo do que um jogo para introduzir/explorar novas temáticas. Um dos aspetos mais positivos da proposta aqui apresentada, o jogo RAAAPIDOO, é o facto de permitir que se façam novas versões, criando adaptações em função da idade ou da temática a trabalhar. Para além disso, não há restrições quanto ao número de jogadores.

Uma das categorias dos jogos desta faixa etária diz respeito à concentração e inspeção visual. Neste tipo de jogos, as crianças são convidadas a identificar diferenças, semelhanças ou associações. Tipicamente, devem concentrar-se e focar a sua atenção, de forma a conseguirem isso antes das crianças (ou adultos) com quem estão a jogar. 

O RAAAPIDOO é um bom exemplo deste tipo de jogos, desenhado por Ignasi Adut e produzido pela Educa Borras (a primeira versão usou o tema tropical).

O RAAAPIDOO utiliza 32 imagens, o jogo comercializado traz consigo pequenos cartões com as 32 imagens (este material não é essencial para que o jogo se realize).

O material de jogo consiste em 5 placas, onde cada uma das 5 placas tem 16 imagens num dos lados e as restantes 16 imagens no outro. Assim, cada placa tem as 32 imagens, sem repetições. Antes de se fazer uma jogada, um dos jogadores baralha as 5 placas; quer isto dizer, vira-as muitas vezes de forma aleatória. Em seguida, coloca as placas em cima de uma mesa/tapete. Ganha a jogada aquele que conseguir descobrir a imagem que está nas 5 faces que ficam voltadas para cima. 

Quando um jogador encontra uma imagem, recolhe o cartão correspondente. Se, ao ganhar uma jogada, o quadradinho correspondente for pertença de outro jogador, este fica sem ele. Numa das variantes mais comuns, ganha o primeiro jogador que conseguir ter 5 cartões. Fica como desafio encontrar o que há em comum nas 5 placas?

Por exemplo, se quisermos explorar os elementos: fogo, gelo, sombra, água, montanha, terra, rocha, arco-íris, neve, onda, cascata, planeta Terra, vento, vulcão, deserto, furacão, tremor de terra, lago, chuva, granizo, pôr-do-Sol, trovão, nevoeiro, praia, nascer-do-Sol, noite, primavera, verão, outono, inverno, fumo, quinta. A única coisa que o leitor tem de fazer é construir as placas usando a ideia do sistema de numeração binário. Naturalmente, as possibilidades são ilimitadas. Inclusivamente, é interessante fazer o jogo com as crianças, na medida em que se pode discutir uma categoria, fazendo os vários desenhos para ela. A empresa Educa Borras, ciente desta possibilidade, fez mais duas versões, uma relacionada com dinossauros e outra com criaturas marinhas. 

Após explorações com muitos educadores, e pensando em crianças mais pequenas, surgiu a ideia de reduzir o número de elementos do jogo. Outra adaptação que pode ser feita diz respeito ao número de elementos utilizados, usando as potências de 2, podem ajustar-se o número de placas: 

A humanidade utiliza o sistema de numeração posicional decimal. Um número como 3452 utiliza a ideia de agrupamento para construir uma escrita mista. O número exposto corresponde a 3 milhares, 4 centenas, 5 dezenas e 2 unidades. O sistema diz-se posicional por incluir uma de duas regras fundamentais: 

O valor dos símbolos depende da posição por si ocupada.

Sendo assim, esta dependência da posição é a causa do carácter misto da escrita (e uma dor de cabeça nas primeiras aprendizagens). A ideia de agrupamento está por trás da palavra decimal e diz respeito à segunda regra fundamental: 

São precisas dez unidades fundamentais de uma ordem numérica para compor uma unidade fundamental da ordem numérica imediatamente superior.

O que isto significa é que é preciso agrupar 10 unidades para compor 1 dezena, 10 dezenas para compor 1 centena, 10 centenas para compor 1 milhar, etc. O “dez” está na base da palavra “decimal” e relaciona se com o facto de termos dez dedos em duas mãos. Se a segunda regra fundamental fosse 

São precisas duas unidades fundamentais de uma ordem numérica para compor uma unidade fundamental da ordem numérica imediatamente superior.

estaríamos perante o sistema de numeração posicional “binário”. Em vez das ordens numéricas das unidades, das dezenas, das centenas, dos milhares, etc. (potências de 10), ficaríamos com as ordens numéricas das unidades, dos dois, dos quatros, dos oitos, etc. Um número como 1011 deixaria de representar 1 unidade, 1 dezena e 1 milhar (ou seja, mil e onze) e passaria a representar 1 unidade, 1 dois e 1 oito (ou seja, onze). 

O sistema binário tem a interessante propriedade de só ter dois estados em cada ordem numérica e, por esse facto, só necessitar de dois símbolos (0 e 1). Uma ordem numérica ou “está ocupada” ou “não está ocupada”. Esse facto está na base de muitos truques de cartas e, de forma muito semelhante, está na base da construção do jogo RAAAPIDOO. 

Quando uma placa cai na mesa, também só tem dois estados – ou está com a frente para cima, ou com o verso para cima. Sendo assim, associando o estado de cada uma das placas a uma ordem numérica, e identificando o 0 com o verso e o 1 com a frente, cada conjunto de 5 placas corresponderá a um número entre 00000 e 11111. Na numeração posicional decimal, 00000 é zero e 11111 é trinta e um; por esse facto, cada uma das imagens deve ser associada a um número entre 0 e 31, inclusive. Por exemplo, se a piranha estiver associada ao número 28, pelo facto de a sua representação binária ser 11100, esta deve ser colocada na frente das placas 3, 4 e 5 (dígito 1) e no verso das placas 1 e 2 (dígito 0). Cada representação binária associada a uma imagem fornece a “chave” para a sua arrumação nas placas do jogo (pode ver-se aqui uma explicação detalhada e outros exemplos de contextos).

Publicado/editado: 05/04/2021