Título: A Herança…
1ª Parte por José Carlos Santos - Dia 1
O Filipe estava bastante apreensivo. Tinha sempre tido muito boa opinião do professor Moreira, quer como pessoa quer como cientista. Mas também tinha consciência que nunca tinham tido muito contacto um com o outro, o que era natural dada a diferença de idades e de trabalharem em áreas científicas distintas — o Filipe era matemático e o professor Moreira era físico, embora fosse engenheiro de formação. A morte do professor entristecera o Filipe, mas nem pensara muito nisso. Aliás, nem lhe ocorrera ir ao funeral. Por isso, foi um choque descobrir que o professor Moreira o tinha mencionado no seu testamento.
O que quer fosse que o professor Moreira lhe tinha deixado estava num anexo da casa dele. Os termos do testamento eram claros: o conteúdo do anexo passava ser do Filipe, mas não o anexo em si, que seria agora propriedade da única sobrinha do professor Moreira, Maria Luisa, que também herdava a casa. Quando o Filipe entrou no anexo pela primeira vez, abriu um envelope entregue por ela. «Caro Filipe» — começava a carta — «Se estás a ler isto é porque já não me encontro entre os vivos. Quero que saibas que te nomeei herdeiro da minha obra-prima pois sei que, dos meus conhecidos, és o único capaz de apreciar devidamente o seu valor.»
2ª Parte por Filipe Oliveira - Dia 6
Filipe parou de ler imediatamente, confuso com a situação. De que se trataria? De uma descoberta científica? O Professor Moreira tinha inúmeros amigos e colaboradores: físicos, matemáticos ou químicos, com bem mais prestígio e capacidade do que Filipe. E que conhecia certamente melhor. Tratar-se-ia então de um outro tipo de «obra prima»? Uma peça artística? Um ensaio autobiográfico? Também nada disto fazia sentido.
Maria Luísa notou o ar perplexo de Filipe.
-Professor Filipe, não se ponha assim...Sabe que o meu tio falava-me muito de si. Talvez por ser da minha idade e por eu ser uma pessoa bastante solitária. Penso que o usava como exemplo para me mostrar que a minha vida não tinha de ser como é...
- Desculpe...não fazia ideia..., respondeu Filipe. Até ontem nem sabia que o Professor Moreira tinha uma sobrinha. Talvez mais logo venha explorar este anexo, para já estou a precisar de ir dar uma volta. Gostaria de me acompanhar? Conheço muito mal a Foz, mas parece-me um sítio muito simpático.
-Concerteza, vamos um pouco até à praia, este anexo também me está a colocar mal disposta, pode esperar mais um pouco.
3ª Parte José veiga de Faria - Dia 11
Quando saíram para a rua, naquele fim de tarde tão doce banhado pelo suave sol de Outono e que torna o Porto tão encantador, Filipe sentiu o coração a bater com força.
Seria a perspetiva de uma descoberta que poderia mudar de forma radical o rumo dos seus trabalhos? Ou seria a companhia daquela rapariga tão simples e bonita como afetiva e interessada?
Maria Luísa devia ter sido o desvelo do seu tio: Filipe pressentia que havia ali uma torrente de emoções contidas, reflexões inteligentes sobre tudo e desvelos ainda sem objeto pronta a brotar assim se oferecesse a oportunidade. Era impressão sua ou percebeu que ela olhava para si como se o destino lhe tivesse colocado no caminho a oportunidade de entrar na VIDA com letras maiúsculas?
- Filipe!... para a Foz vamos junto ao rio. Seguimos o seu curso para descobrirmos onde vai desaguar… – disse Maria Luísa sorrindo e pensando aonde acabaria por desaguar a vida de ambos. Partimos da Ribeira, a parte mais antiga e a raiz da cidade, e caminhamos junto à margem do Douro. Vai ver que não vão faltar situações para nos surpreender…
Filipe já se sentia transportado…
- Com que então a obra-prima do Professor Moreira… - pensou com os seus botões.
4ª Parte por Sílvio Gama - Dia 16
Filipe sentiu nesse momento, de forma precisa, a aridez do seu mundo sentimental que as longas horas diárias consagradas à investigação científica sentenciam, diariamente, a sua vida. Imerso em pensamentos e emoções bloqueados por uma pressão no peito, Filipe lá disse desajeitadamente: “Vamos a tua casa ver o que o teu tio me destinou!”.
Maria Luísa reagiu com um lacónico “Está bem!” ao mesmo tempo que sentia as entranhas a exigirem mais ar dos pulmões. A viagem de regresso foi silenciosa. Que vontade tinham ambos de se dizerem coisas.
Quando chegaram, foram, de imediato, para o anexo. Filipe dirigiu-se para a secretária que lá se encontrava. Após vasculhar algumas gavetas, encontrou um documento antigo escrito em alemão. O pós-doc de três anos na Alemanha permitiram-no, rapidamente, ler “Algumas ideias sobre os zeros... ”. Filipe não quis acreditar... Aquelas páginas eram assinadas por Bernhard Riemann.
-- “Que papéis são esses?” – perguntou Maria Luísa. “Parecem muito antigos.”
-- “São apontamentos escritos pelo próprio Riemann, importante matemático do Séc. XIX. Ele obteve uma fórmula analítica para o número de números primos até um limite prefixado. Essa fórmula é expressa em termos dos zeros da função zeta... “.
Numa fração de segundo, Filipe deixa cair ao chão os manuscritos de Riemann para agarrar, nos seus braços, Maria Luísa, que o abraça com retribuída intensidade. Lá bem no alto, Bernhard em gargalhadas bem sonoras, afirmava: “Oh Moreira... não sabia que a função zeta também produzia destes frutos!”.
5ª Parte por Paulo Correia - Dia 21
Após alguns segundos, que Filipe não conseguia precisar quantos, ambos se afastaram, colocando as mãos nos bolsos num sinal claro de embaraço...
Filipe agarrou instintivamente na carta de Riemann para desbloquear o embaraço... viu melhor e de imediato alguns detalhes lhe chamaram a atenção – o destinatário era completamente desconhecido: Herr Hcier, e o texto falava demasiado dos zeros da função Zeta, mais ou menos um parágrafo para cada zero específico, como se cada um dos zeros tivesse uma personalidade ou um significado especial... Então Filipe foi raciocinando em voz alta “Estranho: a carta é antiga, mas não parece autêntica”.
Depois estranhou ou nome do destinatário – era Reich ao contrário... talvez no seu doutoramento em chaves RSA residisse a razão pela qual o Professor Moreira o tivesse eleito como o melhor apreciador do espólio. Luísa sorriu, não parecendo muito surpreendida.
Filipe procurou melhor nos apontamentos do Professor Moreira, haviam listas de números, mapas do norte da Alemanha, impressões de páginas de Internet sobre ouro nazi... e uma página com a uma indicação muito estranha “O maior número primo : 3 20 9 4 1 4 14 3 14 12 1 11 20 9 20 1”. O professor Moreira queria chamar a sua atenção, nem o número era primo, nem seria o maior deles. Para um especialista em encriptação, nem foi preciso pensar – era um aviso encriptado com um código simples: C-U-I-D-A-D-O-C-O-M-A-L-U-I-S-A.
6ª Parte por Carlos Marinho - Dia 26 - Fim do Episódio
Filipe estava confuso. Mas também apaixonado. Esteve semanas a fio a tentar decifrar todos aqueles enigmas com a ajuda do seu amigo Juvenal, colega de departamento. Todos os dias saía com Luisa. Os sentimentos por ela cresciam. Um dia encheu-se de coragem e pediu-a em casamento. Luisa aceitou. Estavam ambos decididos a viver juntos. Afinal, gostavam ambos das mesmas coisas. Adoravam matemática, eram sócios do Benfica, ouviam Pink, gostavam dos mesmos filmes, até o matemático preferido era comum, Gauss. Eram definitivamente almas gémeas. Decidiram casar a 30 de abril data de nascimento de Gauss. Pelas 17 horas estavam todos na igreja com mais de uma centena de convidados. A cerimónia iniciou-se...até que o padre fez a pergunta.
- Alguém tem algo contra este casamento, que fale, ou se cale para sempre.
E alguém falou...
Do fundo da igreja ouviu-se uma voz bonita e estridente de mulher...“Diese Ehe ist nicht möglich...” (Esse casamento não é possível”). Do outro canto, lado direito da igreja, atrasado na cerimónia, ofegante e apressado corria desenfreado Juvenal com um papel na mão que entregou ao padre que dizia “3 20 9 4 1 4 14 3 14 12 1 11 20 9 20 1 - C-U-I-D-A-D-O-C-O-M-A-L-U-I-S-A…”…"5 9 18 13 1 7 5 13 5 1 4 5 6 9 11 1 16 5 – É-I-R-M-Ã-G-É-M-E-A-D-E-F-I-L-I-P-E."
Juvenal tinha descodificado a restante mensagem codificada que o professor Moreira tinha deixado.
No fundo da igreja a bonita e ex-mulher do professor Moreira de sotaque alemão avançava em direção ao altar…
Os contos de 3º grau é uma rubrica escrita por episódios por 6 matemáticos. De cindo em cinco dias, um episódio. No final de cada mês temos o fim da história. Desde fevereiro até julho foram escritas 6 histórias todas diferentes com finais sempre surpreendentes. Leia ou releia nas férias estes contos e ria-se com a matemática de cada conto.
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7º Episódio - A Descoberta (Leia Aqui) |
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6º Episódio - Apenas Acaso, provavelmente (Leia Aqui) |
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3º Episódio - O Impacto (Leia Aqui)
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