Entrevista ao Prof. Dr. João Araújo, Presidente da SPM - Parte II

Clube Entrevista

O Clube de Matemática da SPM na sua rubrica "Clube Entrevista" conversa com o Prof. Dr. João Araújo – Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática e Professor da Universidade Nova de Lisboa, cumprindo assim uma tradição de 12 anos, desde janeiro de 2011, a todos os seus presidentes. 

Entrevista Parte I

Continuação...

Parte II

Tem feito um grande esforço na divulgação da matemática neste biénio. Esse enorme esforço tem dado resultados em que domínios?

O primeiro objetivo era colocar a SPM como ponto focal dos jornalistas. Perante um sem número de questões, faz sentido ouvir a SPM e isso exige que os jornalistas a conheçam, tenham o seu contacto, tenham o hábito de pensar nela como hipótese para comentar algum aspeto da atualidade, convidem para programas de divulgação onde a sua vertente mais fascinante pode ser exibida, etc. 

O segundo objetivo foi colocar a SPM como algo que vende mediaticamente e assim atrair apoios, propostas de cooperação, etc. Se a SPM tem uma presença constante na comunicação social, pode ser embaixadora das maravilhas da matemática, pode ter voz ativa na definição de políticas de educação (e ser ouvida pela população), fica como interlocutor natural de quem tem projeto, ideias, ou para quem simplesmente quer apoiar ou ajudar. 

Quais são os problemas neste momento do ensino da matemática em Portugal? E soluções positivas existem?

O ensino é um sistema e a melhoria passa por melhorar cada uma das componentes: prestigiar a função de professor, reorganizar as escolas e contratações, melhorar condições de trabalho e remunerações, ajustamentos ao programa, outras formas mais eficazes de ensinar, aprendizagem assistida por computador, publicitar intervenções pedagógicas com ótima relação custo/benefício, instalações, qualidade dos manuais, qualidade dos exercícios (um professor de matemática mede-se pelos exercícios que propõe), articulação com o superior, integração dos pais, técnicas para aumentar a atenção dos alunos, mecanismos para não deixar ninguém para trás, etc.. O problema é que tudo isto é reduzido à permanente refundação de programas a partir do zero, cortina de fumo para esconder a inação em todas as outras vertentes. E o pior é que a mudança no programa é estruturalmente mal feita. Um novo programa é comparável a um novo fármaco: está sujeito a um protocolo de verificação muito rigoroso para ter bons resultados, não boas intenções. O protocolo exige saber:

a) que objetivos mensuráveis e objetivos se pretendem atingir; b) que fundamentos teóricos indicam que a proposta atinge os objectivos? c) onde foi testada em amostra aleatória e grupo de controle, por pessoas não relacionadas com os autores e avaliada por equipas independentes com resultados publicados em revista com referee, comprovando que a intervenção atingiu os resultados definidos? d) entidade independente a monitorizar os objetivos mensuráveis quando o modelo é aplicado em larga escala, etc. Em vez disto o que temos são considerações mais ou menos educadas, mas que abrem a porta a que mude o Governo e apareça outro grupo a avançar com o oposto igualmente apoiado em considerações mais ou menos educadas. Isto não é forma de tratar professores, alunos, direções, pais, editores, ou o sistema.

As soluções positivas existem. Antes de mais ver o que acontece nos sistemas de referência. Por exemplo, em Singapura têm o mesmo programa e manuais há 30 anos, os resultados são impressionantes, mas não é uma questão apenas de manuais e programas; é uma questão do sistema: formação dos professores para saberem em cada momento o que estão a fazer, para quê e porquê, manuais para o aluno, para o professor e para os pais; qualidade dos materiais; etc. Se o tempo de permanência dos alunos na escola fosse ilimitado, com mais e mais horas todos atingiriam o mesmo nível; só que o objetivo é conseguir ensinar muito num tempo muito limitado, e isto exige esforço aos adultos. Outra questão fundamental é articular os objetivos do secundário com as universidades. O IB, um programa do secundário de referência a nível mundial, só introduz alterações depois de serem aprovadas pelas melhores universidades do mundo. O hábito em Portugal de pensar o secundário à revelia do superior é deplorável. 

Se pudesse impor uma decisão para melhorar o ensino da matemática, qual seria a mais prioritária? 

Sugiro três medidas por ordem de prioridade: 

a) os adultos perceberem que lhes cabe a eles fazer um esforço sério, profissional, honesto e profundo para que a aprendizagem das crianças seja mais suave e significativa; a preguiça dos adultos paga-se com sofrimento das crianças, trauma, abandono, baixar de fasquia e um deplorável entrincheiramento político da educação quando deveria era haver um pacto de regime no assunto. Um programa tem de ser claro, tem de estar densificado (num documento de tipo metas curriculares) e tem de especificar o nível que se pretende atingir (através de uma lista de exercícios-tipo produzida pela tutela). Se o que há a aprender não está bem delimitado, os alunos ficam sem saber se estão a 100m da meta ou a 1000km, o que os condena ou ao estudo permanente ou ao peso contínuo “devia estar a estudar”. Isto é inaceitável. Tem de haver vida para além da escola. Finalmente, nas equipas que fazem os programas precisamos ter por um lado pessoas muito competentes e conhecedoras de ciências da educação e com experiência real nas escolas básicas/secundárias, com uma visão panorâmica das diversas correntes e dos seus efeitos, e que por isso não permitem a entrada nas escolas de doutrinas nocivas e perniciosas (não podem ser “académicos” preguiçosos e incompetentes que se limitam a importar para Portugal o último relatório do think tank americano da sua cor política, como infelizmente tem acontecido).  

Por outro lado, o grupo terá matemáticos com publicações em revistas de topo, não por saberem mais que os outros, mas por terem conhecimentos com um valor explicativo muito maior, e essa perspetiva é essencial para se perceber o que nos programas está a mais e no que vale investir, como ensinar para que com o mesmo esforço o aluno fique a saber muito mais, as linhas em que a matemática está a evoluir e as linhas em que aquele conteúdo já não faz sentido. Por exemplo, há anos que a combinatória é ensinada com permutações, combinações, arranjos com e sem repetição, etc. Essa não é a melhor forma de ensinar, mas só uma pessoa com publicações de topo em combinatória pode chegar e dizer: vamos substituir essas ideias antigas pela contagem de palavras que é muito mais fácil de aprender e permite resolver problemas muito mais complexos. 

b) é preciso ter bons professores e bom sistema, mas é importante haver uma estrutura que não deixe nenhum aluno para trás e aí as autarquias poderiam ser fundamentais já que esta estrutura implica aumentar 20-30% o número de professores do sistema; 

c) a intervenção pedagógica mais eficaz que se conhece é o feedback preventivo (no início de cada módulo os alunos são claramente informados do que se pretende atingir -aprender a tabuada do 6-;  no final há um instrumento de avaliação fina que faz a radiografia de cada aluno relativamente aos objetivos do módulo - o António não consolidou 6x4 e 6x7-; a partir daí faz-se um plano de recuperação personalizado); mas isto é demasiado pesado para as obrigações que os professores já têm. A solução é haver sistemas de AI de apoio aos professores que permitam fazer o feedback preventivo de forma automática. Isto em grande parte já seria possível hoje com a capacidade de gerar perguntas em número ilimitado e corrigir as respostas abertas dos alunos.

O João Araújo através da SPM foi dos primeiros a alertar para a falta de professores de matemática em Portugal no futuro. Qual é o cenário que pode traçar neste domínio?

As escolas privadas começaram a mandar-me pedidos de professores de matemática oferecendo ordenados entre 2500 e 3400 euros. Salários destes pareciam indiciar pouca oferta. Foi quando percebi que por ano vão sair mais de 200 professores do ensino (200 para a reforma e os outros por desilusão, etc) e estavam nos mestrados profissionalizantes todos do país uns 60 alunos. Qual será o resultado? Voltarmos aos alunos do segundo ano de engenharia a dar matemática no secundário, recuperando os problemas de má memória dos anos 80 e 90.

TSF Uma Questão de ADN - Podcast TSF com Teresa Dias Mendes

O que se pode dizer como motivação a um professor de matemática que engrossa o atual sistema de ensino e/ou aqueles que podem enveredar por esta carreira?

Verdadeiramente necessário era tomar muitas medidas para que a boa situação dos professores falasse por si: a) Prestigiar a função com condições, distinções, prémios, etc., de forma que os professores se sintam felizes, seguros, e reconhecidos (um novo professor devia ser recebido em sessão solene de apresentação na escola com professores, pais e alunos); b) isentar de propinas e pagando ordenado nos mestrados profissionalizantes; c) criando cursos de matemática educacional com generosos numerus clausus, distinguindo-os claramente dos cursos científicos de matemática que estão com médias altíssimas e outros objetivos; d) acabar com as burocracias e complicações que distraem da docência e quebram o moral dos professores; e) acabar com quotas e avaliações permitindo a progressão automática apenas com base em critérios objetivos (assiduidade, etc); f) acabar com mudanças permanentes de programas que atiram milhões de aulas preparadas para o lixo, escolhas de novos manuais, etc.; g) acabar com as condições que fazem com que os professores andem de casa e família às costas; h) dar estabilidade para os professores se identificarem com o projeto de uma escola, contribuírem e lutarem por ele; i) e muito mais.... 

A pandemia covid-19 poderá ter feito estragos ao nível do ensino da matemática?

Tem-se falado muito disso, mas a quantificação assenta nos estudos a alunos que ficaram sem aulas por causa de greves ou por tempestades de neve que impediam sair de casa. Mas na pandemia os alunos não estiveram sem aulas, pelo que a extrapolação me parece ilegítima. Alega-se também que os professores não conheciam técnicas de ensino a distância e por isso o ensino ressentiu-se; certo, só que o melhor ensino a distância visa ensinar muito e bem com menos esforço para todos. Os professores poderiam não saber estas técnicas, mas compensaram com muito mais esforço e trabalho. O exame nacional de matemática 2021 estava muito bem feito e houve ótimos resultados, ou seja, muitos alunos aprenderam muito e bem. E há dezenas de milhar de professores que estudaram na Universidade Aberta (em complementos de habilitação, licenciaturas, mestrados e doutoramentos, ou na formação de professores) e que por isso conheciam as técnicas de ensino a distância que funcionam melhor. As condições foram mais difíceis, mas os professores também trabalharam mais, alguns sabiam como se ensina bem a distância, etc. Qual o saldo final destes mecanismos contraditórios? A investigação estará aí para o esclarecer um dia. Mas os factos são estes: se tivéssemos programas completamente claros, densificados e com níveis bem definidos, se tivéssemos instrumentos de avaliação externa a permitir comparar alunos de anos diferentes, neste momento teríamos uma ideia muito precisa dos estragos da pandemia e dos pontos que era preciso recuperar. Assim, é apenas dizer que estamos perdidos quando nem sabemos para onde íamos...

Como será a investigação matemática no futuro?

Há poucos meses uma máquina de inteligência artificial aplicada à demonstração de teoremas conseguiu provar autonomamente a maioria dos teoremas que se estudam numa licenciatura ou mestrado de matemática. A matemática do futuro será feita por computadores que num minuto vão demonstrar teoremas mais profundas do que toda a matemática produzida nos últimos 3 mil anos. Esses computadores serão guiados pelas perguntas de pessoas cujo virtuosismo matemático já não será apreciado na capacidade de demonstrar, mas na qualidade das perguntas que faz. O matemático do futuro saberá muita mais matemática que os maiores matemáticos atuais e terá acesso a máquinas com capacidade de responder ao que hoje nem nos atrevemos a perguntar. Verdadeiramente, nunca os tempos estiveram tão fascinantes para se ser matemático. 

 

Continua...

 

Por Carlos Marinho

Publicado/editado: 20/07/2022