Ideias Não Orientáveis por Inês Guimarães - Mente Humana VS Números Grandes (Parte 2)

Eixos de Opinião de Maio de 2020

Inês Guimarães - Aluna de Mestrado em Matemática e Autora do Canal MathGurl no YouTube


Título: Mente Humana VS Números Grandes (Parte 2)

Olá a todos! Como certamente o vosso dia predileto de cada mês é o dia 19, por morrerem de alegria ao ler a minha escrita mensal aqui no Clube (ai, a ironia...), devem recordar-se que terminei o último artigo dizendo que hoje continuaríamos a falar sobre números grandes. Agradeço desde já ao Nuno Arala (que é só uma das pessoas mais fantásticas do mundo) por me ter sugerido este tema e um dos exemplos que vos vou mostrar. 

Começo por introduzir o conceito de “número primo”, por respeito àqueles que não estão familiarizados com a área. Ora, os números primos são, de certo modo, as peças de Lego que nos permitem construir todos os números inteiros através da multiplicação, na medida em que qualquer número inteiro pode ser escrito como um produto de números primos, e de forma única, a menos de ordem. Caracterizam-se pela propriedade de serem apenas divisíveis por 1 e por si próprios. Por exemplo, o número 7 é um número primo, já que os seus únicos divisores (positivos) são o 1 e o 7. Por outro lado, o número 6 não é primo, pois além de ser divisível por 1 e por 6, tem como divisores o 2 e o 3. À primeira vista, esta pode parecer uma noção que só serve para encher chouriços, mas acreditem que é extremamente interessante e poderosa, tendo inclusive um papel fulcral na segurança informática. 

Já sabemos há mais de dois milénios que estes números especiais existem em quantidade infinita. E os primos têm sido exaustivamente estudados pelos matemáticos, nunca saem de moda! Até porque ainda há perguntas inocentes, das quais eles são os protagonistas, cuja resposta permanece um mistério...

Falemos agora de séries numéricas. Em termos grosseiros, uma série é essencialmente uma soma com infinitas parcelas. Quando uma tal soma produz um resultado numérico, dizemos que a série é convergente; caso contrário, é divergente. Por exemplo, a série

1 + 0.1 + 0.01 + 0.001 + 0.0001 + ...

converge para o número 1.1111111..., ao passo que as séries

1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 + 7 + ...

1 – 1 + 1 – 1 + 1 – 1 + 1 – 1 + ...

divergem: a primeira porque ultrapassa qualquer número (real) que possam imaginar (digamos que o seu “valor” é infinito) e a segunda pelo facto de as suas somas parciais oscilarem entre 0 e 1. O terreno que acabamos de pisar é bastante delicado, tendo em conta que a mente humana tem grandes dificuldades em processar o conceito de infinito.

Um resultado que poderá ser contraintuitivo é o seguinte: a série dos inversos dos números naturais

1/1 + 1/2 + 1/3 + 1/4 + 1/5 + 1/6 +...

diverge, embora a gente vá somando números cada vez mais pequeninos. De facto, a soma das primeiras 100 parcelas é de pouco mais do que 5; a soma das primeiras 100 000 parcelas é de aproximadamente 12; a soma das primeiras 100 000 000 parcelas não chega a 19. Mas, embora estes valores cresçam devagarinho, nunca estabilizam, a série acaba por explodir! Contudo, se multiplicarmos cada parcela anterior por si própria e somarmos tudo, obtemos a série dos inversos dos quadrados,

1 + 1/4 + 1/9 + 1/25 + 1/36 + 1/49 + ...

que converge para  π2/6, aproximadamente 1.6449 (nem chega a 2). Assim, não é de todo óbvio quando é que uma série numérica estabiliza e quando é que explode, nos casos em que vamos somando números pequeninos. Não obstante, até este ponto, aquilo que escrevi não é novidade para quem tem alguma familiaridade com a matemática. A parte (talvez) surpreendente começa agora.

É possível provar que a série dos inversos dos números primos

1/2 + 1/3 + 1/5 + 1/7 + 1/11 + 1/13 + 1/17 + ...       (*)

é uma série divergente, uma série que explode, que se torna maior do que qualquer número que possamos conceber! Naturalmente, cresce mais devagar do que a série dos inversos de todos os números inteiros (por estarmos a descartar várias parcelas desta última). Mas quão mais devagar? Ora bem, se somarmos os primeiros 100 termos desta série, obtemos aproximadamente 2 (antes era perto de 5); se somarmos os primeiros 100 000 termos não chegamos a 3 (antes era 12); se somarmos os primeiros 100 000 000... ficamos muito próximos de 3 na mesma, ao passo que na série dos inversos dos naturais já íamos quase em 19. Com efeito, nem se adicionarmos as primeiras 1020  parcelas de (*) conseguimos chegar a 4. Mais: estima-se que haja cerca de 1080 átomos no universo. Se escrevêssemos um primo em cada átomo e somássemos os inversos desses valores, ficaríamos próximos de... 5. CINCO!

E, no entanto, a série dos inversos dos primos DIVERGE, eventualmente ultrapassando qualquer número real. Por exemplo, existe garantidamente um número primo P tal que 1/2 + 1/3 + 1/5 + ... + 1/P > 10100. Mas a soma 1 + 1/2 + 1/3 + 1/5 + ... + 1/Q, onde Q é o número primo que surge na posição 10100, nem sequer chega a 6. 

Fazendo um paralelismo com a realidade, o acumular de pequenas atitudes no nosso dia-a-dia pode surtir efeitos gigantes e inesperados no futuro... Pensem nisto!

Espero que tenham gostado deste artigo e, se o quiserem comentar, passem pela página de Facebook do Clube de Matemática. Se me quiserem chatear, escrevam para inesguimaraes42@gmail.com.

Muito obrigada e até daqui a um mês!

Publicado/editado: 19/05/2020