À Distância por Daniel Folha



 


Distâncias (quase) infinitamente grandes e distâncias (quase) infinitamente pequenas estão intrinsecamente relacionadas no Universo de que fazemos parte e que aos poucos vamos tentando conhecer melhor. Nesta rubrica escreverei algumas palavras, e números (!), sobre o Universo que vemos quando olhamos para um céu estrelado numa noite límpida. Uma modesta contribuição para ajudar a reflectir sobre a nossa posição no contexto cósmico.
Daniel F. M. Folha - Professor Auxiliar do Instituto Superior de Ciências Saúde – Norte (ISCS-N), Coordenador de Projectos e Protocolos do CIENCEDUC – Educação para as Ciências (Departamento de Ciências do ISCS-N), Investigador do Centro de Astrofísica da Universidade do Porto (CAUP)
 


Artigo de Janeiro


Título: Planetas ao anoitecer e notícias online


Não era minha intenção que a rubrica deste mês continuasse com Vénus e Júpiter como pano de fundo, mas uma peça jornalística publicada online, na página internet do jornal diário desportivo A Bola, no pretérito dia 26 de dezembro de 2011, às 17h41, assinada por “Redacção”, fez-me mudar de ideias.

A notícia em causa diz o seguinte:

“Júpiter, Vénus e Lua estarão lado a lado esta segunda-feira

Hoje, ao final da tarde, será possível observar nos céus um fenómeno astronómico pouco comum: Vénus, Lua e Júpiter vão estar próximos e visíveis na mesma área do céu, ao alcance de um olhar.

O fenómeno de aproximação teve início esta manhã, mas o Sol impede a visualização.

Assim que a luz solar começar a diminuir, Vénus vai brilhar no horizonte a cerca de seis graus à direita da Lua, totalmente visível.

Segundo explicam os investigadores da NASA, este fenómeno só é possível porque a luz do Sol reflecte no planeta Terra e ilumina o terreno lunar.

O fenómeno é apelidado de «resplandecência de Da Vinci» porque foi o pintor renascentista o primeiro a identificar este fenómeno, há 500 anos.

Para poder observar o alinhamento não é necessário ter um telescópio. Um lugar alto e com boa visibilidade para a linha do horizonte são os requisitos, uma vez que o fenómeno acontece perto da linha do pôr-do-sol.

Os especialistas defendem que a Lua ficará totalmente escondida às 19.07 horas e poucos minutos depois Vénus continuará o movimento de translação em volta do Sol.”

Não coloco em causa as competências dos colaboradores de A Bola para escrever sobre desporto, mas já para escrever sobre Astronomia...

O texto publicado por A Bola abre com uma falsidade, facilmente constatável no momento da publicação da notícia. Bastava ter olhado para o céu naquele anoitecer de 26 de dezembro para verificar que um olhar não seria suficiente para observar Vénus, Júpiter e a Lua. Vénus e a Lua podiam ser vistos próximos um do outro, e próximos do horizonte em direção a sudoeste, enquanto Júpiter se encontrava muito mais alto no céu fora do campo visual de quem olhava para o par Lua-Vénus (a distância angular entre Júpiter e a Lua era de 91 graus). Dificilmente podemos considerar que objetos celestes nestas circunstâncias estão “na mesma área do céu”!

O texto continua, referindo que a aproximação dos astros em causa tinha tido início naquela manhã de 26 de dezembro. Estranha afirmação! Devido ao movimento periódico da Lua em volta da Terra (com período de cerca de 27 dias), e do movimento periódico de Vénus em torno do Sol, a distância angular entre Vénus e a Lua, vista por um observador na Terra, varia de modo continuo e quase periódico, ora aumentando ora diminuindo à medida que ambos os astros realizam o seu movimento aparente na esfera celeste. Vénus e a Lua tinham já estado separados por menos de 10 graus ao final dos dias 26 e 27 de novembro de 2011, e vão continuar a encontrar-se, e a ser visíveis na mesma região do céu, ao anoitecer, por volta dos dias 25 e 26 de cada um dos próximos meses.

Ainda sobre movimento, o que dizer sobre a última frase da peça jornalística :“...e poucos minutos depois Vénus continuará o movimento de translação em volta do Sol”. Como se Vénus, ou qualquer outro planeta, parasse o seu movimento de translação, ainda que temporariamente!

Na mesma frase, é dito “...especialistas defendem que a Lua ficará totalmente escondida às 19.07 horas...”. A hora do nascimento e do ocaso dos objetos celestes, e em particular da Lua, depende do local de observação à superfície da Terra. Por exemplo, no dia 26 de dezembro de 2011, o ocaso da Lua ocorreu às 19h33 para um observador em Lisboa, e às 19h26 para um observador no Porto, como se pode constatar da consulta dos Almanaques do Observatório Astronómico de Lisboa. Em nenhum local de Portugal continental ou das regiões autónomas o ocaso da Lua ocorreu às 19h07 referida por A Bola.

O texto publicado por A Bola refere dois fenómenos astronómicos, a suposta conjunção tripla de Vénus, Júpiter e Lua a 26 de dezembro, e a resplandecência de Da Vinci. Por desconhecimento do autor da notícia, ou por manifesta falta de cuidado na elaboração do texto, foi transmitida a ideia de que a visibilidade do fenómeno de proximidade entre Vénus e a Lua seria devida à resplandecência de Da Vinci. Este último fenómeno, mais facilmente observável quando a Lua é visível nos dias que imediatamente antecedem e precedem a Lua Nova, é responsável por possibilitar a visualização por completo do disco lunar, apesar de apenas uma pequena parte dele ser iluminada diretamente pela luz solar. Deve ficar claro para todos que a resplandecência de Da Vinci nada tem a ver com a proximidade angular entre Vénus e a Lua, ou entre a Lua e qualquer outro planeta.

Verdade, rigor e clareza são qualidades imprescindíveis numa notícia. Infelizmente, nenhuma destas qualidades se aplica ao artigo publicado online por A Bola. Para ser jornalista e escrever sobre desporto é necessário saber de desporto, para ser jornalista e escrever sobre política é necessário saber de política, para ser jornalista e escrever sobre economia é necessário saber de economia... Para ser jornalista e escrever sobre ciência, é necessário saber ciência! Este é um aspecto muitas vezes negligenciado por quem faz jornalismo em Portugal.

Voltando ao texto publicado por A Bola, nem tudo está perdido! Com os necessários ajustes, é possível transforma-lo numa notícia para publicar no próximo dia 25 de Março. Nessa data, e no dia seguinte, ocorrerá uma conjunção tripla de Júpiter, Vénus e Lua. Para a observar bastará um local com boa visibilidade para o horizonte oeste e que as nuvens não apareçam. Se a poluição luminosa for pouca ou nenhuma, tanto melhor.


P.S. 1 – Depois de escrever o texto para este mês, descobri que o Jornal de Notícias online publicou, também a 26 de dezembro, uma notícia muito parecida com a que acima transcrevo do jornal A Bola online. Algumas frases são, aliás exatamente iguais! Que jornalismo este, que se vai praticando em Portugal!!

P.S. 2 – Aqui fica a hiperligação para os artigos de A Bola online e Jornal de Notícias online, funcionais à data de publicação deste artigo: http://www.abola.pt/mundos/ver.aspx?id=306288  e http://www.jn.pt/PaginaInicial/Sociedade/Interior.aspx?content_id=2206792, bem como para os Almanaques do Observatório Astronómico de Lisboa http://www.oal.ul.pt/index.php?link=dados2011#



Todos os meses, no dia 13 de cada mês:

 

Artigo "À Distância" de Janeiro - Planetas ao anoitecer e notícias online


Artigo "À Distância" de Dezembro - Planetas ao Anoitecer


Artigo "À Distância" de Novembro - Mudança da Hora


Artigo "À Distância" de Outubro - dia 13


Artigo "À Distância" de Setembro - dia 13


Artigo "À Distância" de julho - dia 13


Artigo "À Distância" de junho - dia 13


Artigo "À Distância" de maio - dia 13

 

Artigo "À Distância" de abril - dia 13


Artigo "À Distância" de março - dia 13


Artigo "À Distância" de fevereiro - dia 13


Artigo "À Distância" de Janeiro - dia 13




Publicado/editado: 13/01/2012