Entre Parênteses () por António Machiavelo


 

 

O que é a Matemática? Para que serve? Como é a Matemática usada no dia-a-dia? Que vantagens traz para a sociedade? E para o indivíduo, que vantagens há em saber Matemática? Estas são algumas das questões que serão abordadas nesta rubrica, onde se abrirão pequenos parênteses para oferecer temas para reflexão e perspectivas talvez ligeiramente diferentes das usuais sobre a Matemática e a sua importância.

 

António Machiavelo - Departamento de Matemática da FCUP

 



Artigo de Dezembro


Título: A Matemática, Helena e os romanos


Alfréd Rényi (1921--1970) foi um matemático húngaro que gostava de remar e nadar no Danúbio no verão, esquiar no inverno, ir a concertos e ao teatro com a família, tocar piano para os amigos. Foi, além disso, um homem de uma enorme coragem. Por ser judeu, foi encarcerado num campo de trabalhos forçados nazi do qual conseguiu fugir, tendo posteriormente conseguido salvar os seus pais do gueto de Budapeste. Como escreve F. Ulam:  «Alfréd conseguiu arranjar um uniforme de soldado, entrou no gueto e marchou para fora com os seus pais. [...] É necessária alguma familiaridade com as circunstâncias, para apreciar a habilidade e a coragem necessárias para realizar esta proeza.»


Em 1967, Rényi publicou os seus "Diálogos sobre a Matemática", dedicados à sua filha. Há uma passagem de um deles, intitulado "Um diálogo sobre as aplicações da Matemática", que tem tudo a ver com os temas sobre os quais tenho vindo a escrever nesta rubrica. Este diálogo é uma conversa (imaginária, obviamente, mas contendo ensinamentos muito reais) entre Arquimedes e Hierão II, rei de Siracusa, na véspera da invasão romana. Aqui fica a referida passagem:


ARQUIMEDES: Recentemente recebi uma carta do meu amigo Eratóstenes na qual descreve um método simples mas muito engenhoso --- a que chama o "método do crivo" --- que ele inventou para encontrar números primos. Pensando um pouco sobre o método, fiz o esboço de uma máquina que aplica esta ideia. Esta máquina funciona com um conjunto de rodas dentadas: quando se gira uma delas um certo número de vezes, digamos n, e se olha por um orifício, se a vista não estiver obstruída, o número n é primo; mas se a vista estiver obstruída, então n é composto.


HIERÃO: Isso é realmente fantástico! Quando a guerra acabar, tens de construir essa máquina! Os meus convidados vão adorá-la.


ARQUIMEDES: Se eu estiver vivo, certamente o farei. Mostrarei assim que as máquinas podem resolver problemas matemáticos. Talvez ajude os matemáticos a perceber que, mesmo do seu próprio ponto de vista, podem ganhar algo em estudar a relação entre a matemática e as máquinas.


HIERÃO: Por falar em ganhos, lembro-me de uma história sobre Euclides. Um dos seus alunos, estudando geometria, perguntou a Euclides: «O que é que eu ganho em aprender estas coisas?». De imediato Euclides chamou um dos seus criados e disse-lhe: «Dá-lhe uma moeda, pois ele quer ganhar alguma coisa com o que aprende». Parece-me que esta história mostra que Euclides achava desnecessário um matemático preocupar-se com o uso prático dos seus resultados.


ARQUIMEDES: Conheço, é claro, essa história, mas surpreender-te-á certamente saber que simpatizo completamente com Euclides. No seu lugar faria exactamente o mesmo.


HIERÃO: Agora fiquei confuso. Até agora falaste entusiasticamente acerca das aplicações da Matemática, e agora concordas com os puristas que pensam que a única recompensa que um cientista deve esperar é o prazer do conhecimento.


ARQUIMEDES: Acho que tu e a maior parte das pessoas não entenderam a história sobre Euclides. Não significa que ele não estivesse interessado nas consequências práticas dos resultados matemáticos, e que as considerasse indignas de um filósofo. Isto é completamente disparatado. Euclides escreveu, como certamente sabes, um livro chamado Phaenomena, sobre astronomia, um livro sobre óptica, e é provavelmente o autor do livro Catoptrica, que eu usei para construir os meus espelhos; e estava também interessado em mecânica.

Como eu entendo a história, Euclides queria apenas realçar o facto notável que a Matemática recompensa apenas aqueles que nela estão interessados, não apenas pelas recompensas mas também por ela própria. A Matemática é como a tua filha, Helena, que fica desconfiada cada vez que aparece um pretendente que não está realmente apaixonado por ela, mas cujo interesse nela tem apenas a ver com o facto de querer ser genro do rei. Ela quer um marido que a ama pela sua própria beleza, inteligência e charme, e não pela riqueza e poder que este obterá ao casar com ela.

Analogamente, a Matemática revela os seus segredos apenas àqueles que a abordam com amor puro, pela sua própria beleza. Aqueles que o fazem são obviamente recompensados com resultados de importância prática. Mas alguém que pergunte, a cada passo, «O que é que eu ganho com isto?», esse não irá longe.

Lembrar-te-ás de eu te ter dito que os romanos nunca seriam bem sucedidos em aplicar a matemática. Agora, vês porquê: são demasiado práticos!


Obs.: O texto completo deste diálogo está disponível, numa tradução para catalão, em: http://publicacions.iec.cat/Front/repository/pdf/00000029/00000077.pdf


Boas festas e celebrações do Solstício de Inverno, e um excelente Ano Novo!



Todos os meses, no dia 5 de cada mês:

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de Dezembro - "A Matemática, Helena e os Romanos"

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de Novembro - "A Matemática como um desporto radical"


Artigo "Entre Parênteses ()"de Outubro - "Matemática e Indústria: Uma relação simbiótica"  

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de setembro - "Pontos, Linhas e a Estrutura do Universo"


Artigo "Entre Parênteses ()"de julho - "As Origens da matemática e as noites de verão"


Artigo "Entre Parênteses ()"de junho - "A Magia dos Telemóveis"


Artigo "Entre Parênteses ()"de maio - "O Poder da Matemática I"


Artigo "Entre Parênteses ()"de abril - "O Poder da Matemática II"


Artigo "Entre Parênteses ()"de março - "A Invisibilidade da matemática"


Artigo "Entre Parênteses ()"de fevereiro - "Perguntas, perguntas e mais perguntas"

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de Janeiro - "Perguntas, respostas, abstracções e um exemplo concreto"



Publicado/editado: 05/12/2011