Entre Parênteses () por António Machiavelo


 

 

O que é a Matemática? Para que serve? Como é a Matemática usada no dia-a-dia? Que vantagens traz para a sociedade? E para o indivíduo, que vantagens há em saber Matemática? Estas são algumas das questões que serão abordadas nesta rubrica, onde se abrirão pequenos parênteses para oferecer temas para reflexão e perspectivas talvez ligeiramente diferentes das usuais sobre a Matemática e a sua importância.

 

António Machiavelo - Departamento de Matemática da FCUP

 



Artigo de Janeiro


Título: O Mistério Mais Antigo


Ninguém sabe exactamente porque razão os Gregos antigos se interessaram por "números perfeitos", números que são iguais à soma de todos os seus divisores, excluindo o próprio número. O menor número perfeito é 6 (=1+2+3) e o seguinte é 28 (=1+2+4+7+14). Os "Elementos" de Euclides (c. -300) contêm a seguinte receita para cozinhar números perfeitos: se n for um número tal que 2^n-1 (dois multiplicado por ele próprio n vezes e a que depois se subtrai uma unidade) é primo (i.e., maior que um e que não pode ser escrito como produto de números menores) , então o número 2^(n-1) * (2^n - 1) é perfeito.


O que é certo é que ao tentar perceber que números poderiam ser utilizados como ingredientes na receita dada por Euclides, Pierre de Fermat (1601?--1665) descobriu um resultado fundamental que séculos mais tarde, em 1978, três especialistas em ciência de computadores e criptografia usaram para criar um protocolo de assinatura digital que é hoje essencial para as mais diversas transacções online.


Este é apenas um de muitos exemplos de como o trabalho em pequenas curiosidades lúdicas vem a ter, posteriormente, por vezes centenas ou mesmo milhares de anos depois, aplicações práticas. Mas não são estas aplicações que deviam servir de justificação única aos esforços dispendidos para desvendar os mistérios dos números perfeitos. Para melhor explicar onde quero chegar, considere-se aquele que é o problema não resolvido mais antigo em Matemática: existe algum número perfeito ímpar? Ninguém conseguiu ainda encontrar um ou mostrar que nenhum existe (em Matemática consegue-se por vezes demonstrar que certas coisas não existem mesmo!).


Qual o interesse deste problema? Tenho quase a certeza de que se alguma vez alguém conseguir descobrir a resposta, que esta não terá qualquer aplicação financeira ou uso utilitário no sentido mais imediato e comum da palavra. Mas, por outro lado, estou convencido que os métodos utilizados para encontrar essa resposta serão complemente novos e extremamente interessantes. Porquê? Porque mais de dois milénios de história mostram que sempre que alguém resolve um problema difícil, um problema que resistiu a algumas gerações de matemáticos, então esse alguém contribui com novas e preciosas ideias que, essas sim, frequentemente têm as mais variadas aplicações.


Mas há uma "aplicação" um pouco mais subtil de um problema como o da existência ou não de números perfeitos ímpares. É que trabalhar em tais questões ajuda a afiar algumas das nossas mais importantes ferramentas evolutivas, servindo para testar os limites intelectuais da nossa espécie. Este tipo de problemas colocam uma questão fundamental: conseguimos resolvê-los, ou estão para além do nosso alcance?


Isto faz-me lembrar o que Carl Gustav Jacobi (1804--1851) escreveu, numa carta datada de 2 de Julho de 1830,

a Adrien-Marie Legendre (1752--1833):


«O Sr. Fourier era da opinião de que o objectivo principal das matemáticas era a utilidade pública e a explicação dos fenómenos naturais; mas um filósofo [hoje dir-se-ia "cientista"] como ele deve ter sabido que o fim único da ciência é a honra do espírito humano, e que, a esse título, uma questão sobre os números vale tanto quanto uma questão sobre o sistema do mundo.»


E é de facto a nossa honra, a honra da nossa espécie, que está em jogo quando se lida com um problema em aberto: será que somos capazes de os resolver? Será que somos suficientemente inteligentes? Trabalhar em tais questões testa os nossos limites intelectuais e pode muito bem contribuir para criar as ferramentas necessárias para ultrapassar esses mesmos limites! Isto aconteceu no passado, e certamente acontecerá no futuro. As vantagens evolutivas deste tipo de trabalho deviam ser óbvias.


É claro que qualquer informação sobre os números perfeitos é somente um minúsculo e muito humilde fragmento de informação sobre a estrutura matemática do Cosmos. Mas como Leonhard Euler  (1707-1783) muito bem escreveu (ver o documento E134 no "The Euler Archive"):


«O conhecimento de uma qualquer verdade é uma questão meritória em si mesma, mesmo daquelas que parecem não estar relacionadas com usos práticos; viu-se já que todas as verdades, pelo menos aquelas que somos capazes de entender, são tão fortemente ligadas entre si, que não podemos considerar nenhuma delas completamente inútil sem alguma imprudência.»


«E assim, mesmo que uma certa proposição pareça ser tal que não acarreta nenhum benefício, quer se venha revelar verdadeira ou falsa, mesmo assim o método que estabeleceria a sua verdade ou falsidade pode ser útil na abertura de caminhos que nos permitam descobrir outras verdades mais úteis. Por essa razão, acredito firmemente que não gastei inutilmente trabalho e esforço em investigar as demonstrações de certas proposições. Por conseguinte, esta teoria de divisores não é completamente inútil, podendo um dia mostrar algum uso que não pode ser desprezado.»


Euler escreveu isto no início de um artigo onde dá uma demonstração do resultado de Fermat acima mencionado. O tempo confirmou plenamente que não poderia ter mais razão: é justamente deste trabalho de Euler que brotaram as ferramentas que hoje estão por detrás de toda a segurança de transacções feitas via internet!!!




Todos os meses, no dia 5 de cada mês:

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de Dezembro - "O Mistério mais Antigo"

Artigo "Entre Parênteses ()"de Dezembro - "A Matemática, Helena e os Romanos"

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de Novembro - "A Matemática como um desporto radical"


Artigo "Entre Parênteses ()"de Outubro - "Matemática e Indústria: Uma relação simbiótica"  

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de setembro - "Pontos, Linhas e a Estrutura do Universo"


Artigo "Entre Parênteses ()"de julho - "As Origens da matemática e as noites de verão"


Artigo "Entre Parênteses ()"de junho - "A Magia dos Telemóveis"


Artigo "Entre Parênteses ()"de maio - "O Poder da Matemática I"


Artigo "Entre Parênteses ()"de abril - "O Poder da Matemática II"


Artigo "Entre Parênteses ()"de março - "A Invisibilidade da matemática"


Artigo "Entre Parênteses ()"de fevereiro - "Perguntas, perguntas e mais perguntas"

 

Artigo "Entre Parênteses ()"de Janeiro - "Perguntas, respostas, abstracções e um exemplo concreto"

Publicado/editado: 06/01/2012